À saída do CEJ ignorava como seria possível responder ao volume de processos que os juízes tinham para despachar diariamente, além do serviço dos julgamentos e audiências prévias. Fazendo as contas ao tempo de um dia nada batia certo!
Essa realidade introduziu-me no tema da importância dos tempos e da gestão do processo, por um lado, e, por outro, na importância da reforma da organização judicial.
No âmbito da gestão processual, o “ataque” ao grande volume de serviço é, a par da decisão, um “ataque” individual e muito solitário. A secretaria apresenta uma grande quantidade de processos sem outro critério que não seja o do escrivão e o da conveniência da sua equipa (os “prazos são muitas vezes “tirados” sem atenção aos prazos legais, mas às possibilidades da secretaria, e vão ao juiz muitas vezes em enormes quantidades, de uma só vez e descompassadamente) e sem qualquer triagem racional e combinada com o juiz. Em bom rigor, a secretaria faz tanta gestão processual como o juiz (a menos que o juiz decida assumir essa tarefa [e deve fazê-lo] ditando as regras pelas quais a secretaria se terá de reger na conclusão prioritária de processos).
Ouvi muitos colegas mais velhos aconselharem-me a reagir caso a secretaria colocasse a despacho cem processos num só dia, referindo que, nestes casos, cem processos tinham de ser devolvidos de imediato para cumprimento de despachos nesse mesmo dia, pois, desse modo, a secretaria seria "domesticada". Essa energia de “combate” induzia coisas estranhas na (in)disciplina do processo. Uma delas era (muitas vezes) a rendição de uma das partes: ou era o juiz a parar a “cadeia de produção” ou era a secretaria a fazê-lo. Em qualquer dos casos por incapacidade de resposta. Quem perde? O cidadão. A gestão processual deve assentar em regras bem definidas pelo juiz e comunicadas à secretaria, por um lado, e assentes, ainda, na ideia de que ninguém consegue fazer tudo, bem, e ao mesmo tempo.
Que fazer?
A abordagem à organização das tarefas processuais deve impor-nos uma forte perspetiva crítica da organização judiciária que as enquadra. No caso da gestão processual, sendo esta uma atividade vocacionada para a eficiência (decidir no prazo razoável, com menos custos, com melhor cooperação e comunicação das decisões judiciais), ela não pode ser prosseguida em função de sérios objetivos mensuráveis e avaliáveis se não for estimulada pela organização judiciária. Cargas de serviço adequadas, ferramentas de reengenharia da distribuição processual (caseflow management), ferramentas tecnológicas, espaços para diligências, comunicações e secretariados eficientes, bons métodos de trabalho, correta política de reconhecimento do mérito, espaços para comparação de práticas e resultados, por exemplo, são passos relevantíssimos para uma boa cultura de gestão processual, mas esta atividade depende da política geral de organização judiciária.
O modelo de administração judiciária do nosso país sedimentou há alguns anos, assente na separação de poderes dos tribunais, tornou-se claro que o poder judicial não é eficientemente governado se a sua administração e gestão não for significativamente transferida para os próprios juízes e para o seu órgão de governo, os respetivos Conselhos Superiores.
Os tribunais são organizações complexas, integradas por várias estruturas profissionais públicas: os magistrados, os oficiais de justiça, outros trabalhadores com contrato de trabalho em funções públicas. Este facto dificulta, em parte, a administração judicial, sobretudo porque estas várias estruturas profissionais reportam a distintas organizações, como é o caso dos Conselhos Superiores, no caso das magistraturas, e do Ministério da Justiça nos demais casos. Temos, por isso, sobreposição e alguns conflitos de competências que resultam, nalguns casos, em decisões administrativas que não estão alinhadas com as necessidades de eficiência e eficácia do judiciário, pelo que a desregulação na racionalização da atribuição dos meios humanos, a sua disciplina e a inexistência de articulação entre o Ministério da Justiça e os Conselhos Superiores em matéria de satisfação de necessidades logísticas, tecnológicas, materiais e de recursos humanos , dificultam e tão pretendida gestão eficiente do judiciário.
O modelo de administração judiciária deverá deslocar assim, e na minha opinião, muitas das tarefas hoje assumidas pelo executivo para o judiciário, culminando na separação da administração dos tribunais do Governo. O Ministério da Justiça, na relação com os tribunais, seria claramente o responsável pelo planeamento e definição das políticas públicas, bem como pela necessária concretização legislativa, incluindo a respeitante à criação e extinção de tribunais. Essa é, verdadeiramente, a sua função, que é política e de defesa e escolha do interesse público na escolha dessas políticas públicas.
Obviamente que neste modelo, importará dedicar especiais cuidados com a garantia da sua independência, impondo, por exemplo, que a negociação do Orçamento do judiciário pelos respetivos Conselhos Superiores devesse ser concretizado em moldes semelhantes à aprovação do Orçamento da Presidência da República. Relembramos que o Orçamento da Presidência da República é aprovado pelo Conselho Administrativo e enviado ao Governo para efeitos de inscrição das respetivas dotações na proposta de Orçamento do Estado a submeter à Assembleia da República (artigo 17º da Lei 7/96, de 29 de Fevereiro).
Com a nova Lei de Organização dos Tribunais Judiciais alguns passos foram dados neste sentido, ainda que, quanto a mim, tenha ficado àquem do desejado. Dotou-se o CSM de autonomia administrativa e financeira, mas só isso, faltando ainda o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
O novo modelo de gestão dos Tribunais Judiciais assentou em três órgãos: (1) o presidente do tribunal, com funções de representação, direção, gestão processual, administrativa e funcional das unidades orgânicas, escolhido e nomeado pelo CSM; (2) o administrador do tribunal, com funções de gestão hoje concentradas na Direção-Geral da Administração da Justiça e no Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, escolhido pelo presidente do tribunal; (3) o Conselho de Comarca, com funções de participação, consulta e apoio ao presidente e ao administrador.
No caso dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o novo ETAF procedeu à sua adaptação à nova LOFTJ, criando: (1) o presidente do tribunal, com funções de representação, direção, gestão processual, administrativa e funcional sobre as unidades orgânicas, escolhido e nomeado pelo CSTAF, sendo desnecessário, face ao nº tribunais existentes e ao facto de se tratarem exclusivamente de Tribunais de Circulo, proceder a mais adaptações.
É incompreensível, neste contexto, que a avaliação do juiz presidente pelo respetivo Conselho Superior, na NLOFTJ, seja feita por uma avaliação/auditoria externa (art. 87.º, n.º 1 LOFTJ). O sentido da alteração parece ir no sentido de colocar a avaliação do Presidente dos Tribunais de 1.ª instância a entidade diferente do órgão máximo de disciplina e gestão dos magistrados, o que não deixa de ser estranho, incoerente e atentatória da imprescindível independência. É, de resto, impensável que o EMJ, no quadro da Constituição, preveja a competência do CSM para avaliar os tribunais como organização horizontal (art. 149.º, al. a), e 161.º do EMJ) e agora se permita que uma entidade contratada pelo Ministério da Justiça avalie um juiz presidente.
Interessante é a questão das atribuições e competências para fixar os indicadores do volume processual adequado para cada juiz e unidade orgânica (contingentação), essenciais para a gestão do tribunal, definição de objetivos, avaliação e racionalização do serviço e dos meios. Esta atribuição e competência está prevista para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais - alínea m), n.º 2 do artigo 74.º novo ETAF - que apenas fará sentido quando os Tribunais tiverem um n.º suficiente de magistrados que permita que esta contingentação tenha utilidade prática, já que de pouco servirá determinar-se que desejavelmente um juiz das secções de administrativo não deva ter, na primeira instância, mais de 200 processos a cargo e que um juiz das secções de tributário não deva ter, desejavelmente, mais de 350 processos a cargo se a vida real impõe que os juízes das secções de administrativo, em muitos tribunais, tenham 300 e 400 processos pendentes a cargo e um juiz das secções de tributário tenha distribuídos 700 a 1000 processos pendentes a cargo!
A sua utilidade apenas servirá para se perceber o limite em que os juízes se encontram a trabalhar!
Em todo o caso, como juiz, vejo como o início de uma boa oportunidade estas novas competências dos respetivos Conselhos Superiores, mas julgo também ser essencial fazer-se uma reflexão séria sobre algumas incongruências existentes para podermos contribuir para a sua melhoria.