terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

2.ª EDIÇÃO DO LIVRO "COMENTÃRIOS À LEI 75/2013, DE 12 DE SETEMBRO"




     Estamos a atualizar os comentários à Lei 75/2013, de 12 de setembro,                              aumentando a edição com todos os diplomas referentes à descentralização.
     Será feita uma 2.ª edição, atualizada e aumentada.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

TRUMP, BOLSONARO E A QUEIXA NO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: o crime de genocídio


Para percecionarmos o conceito de genocídio importa perceber a definição de grupo, que, com o tempo e com decisões judiciais e legislativas tem vindo a ser preenchida e concretizada, face à ocorrência, por vezes inovadora, de condutas que preenchem o tipo legal internacional que abordamos.
O que entendemos por grupo? De que modo este conceito se liga e revela na conceção do crime de genocídio? Que indivíduos integram um grupo? Quais as qualidades inerentes a cada grupo e que fazem dele isso mesmo, um grupo?
No ERTPI, o termo “grupo” traz um significado cuja identificação é muito relevante. O grupo visado pelo comportamento genocida pode assumir distintas vertentes, mas deve adquirir uma característica de estabilidade e de permanência, para que seja empiricamente identificado como tal.
Ora, o grupo que se pretende destruir deve ser encarado como tal. A prática de atos isolados e independentes de uma tal intenção de aniquilar um grupo, não se inscrevem no âmbito de considerações do genocídio.
O grupo deve ser considerado enquanto entidade separada e distinta e as suas características culturais, religiosas étnicas ou nacionais devem ser identificadas dentro do contexto sócio-histórico onde se inserem. Um grupo nacional será composto por um conjunto de pessoas que partilham um vínculo jurídico assente numa cidadania comum, conjugada com a reciprocidade de direitos e deveres ou ligadas por um sentimento de pertença comum, de identidade de raça, de religião, de linguagem ou de tradições comuns, nem sempre adquiridas pelo nascimento ou ao seu tempo.
O requisito da permanência e estabilidade podem revelar, nalguns casos, alguma dificuldade. Noutra perspetiva, a etnia de um grupo não necessita de corresponder a um espaço geográfico. Os grupos rácicos são compostos por indivíduos que, por hereditariedade, possuem as mesmas características físicas que, naturalmente, os distinguem de outros grupos, também eles rácicos.
Pois bem, os contexto da prática de tais atos deve incluir os designados atos preparatórios que revelam amiúde a criação de um padrão de conduta, tendo em conta o artigo 30.º do ERTPI.
O homicídio de membros do grupo – o efeito morte – não deve obedecer a um critério quantitativo. Este resultado não é sequer uma conditio sinae qua non da qualificação de um ato enquanto genocida. A prova dessa prática é facilitada com a comprovação de que, fruto de tais ataques, de tais políticas registam-se mortes no seio do grupo. Mas há outos requisitos para o crime de genocídio: a existência de ofensas graves a que a alínea b) se refere e que podem ser atos como a tortura, violação e violência sexuais ou um desumano e degradante tratamento.
Outros dos requisitos correspondem, ainda, às situações em que um ou mais membros do grupo são sujeitos a condições de vida,  com vista à sua destruição total ou parcial, que podem corresponder à privação das liberdades e direitos civis mais básicos, à privação de recursos naturais essenciais à sobrevivência humana ou à expulsão sistemática de residências.
Ainda tem de haver uma intenção de procurar atingir o grupo, com este específico objetivo, dirigido aos seus membros, no seu todo ou em parte. Esta é, de resto, uma distinção relevante entre o Crime de Genocídio e os Crimes Contra a Humanidade.
O elemento mental no crime de genocídio, à falta de uma confissão expressa do perpetrador, pode afastar-se da realidade dos factos, se não puder ser retirado da conduta, da organização do ato e da execução do mesmo.
À semelhança do que sucede com o crime de perseguição, o crime de genocídio distingue-se pela verificação de um dolus specialis, que, no entanto, deve ter uma conceção maior e de maior gravidade, que naquele primeiro, aliado à intenção de destruir um grupo protegido.
Todas estas ideias soltas que aqui deixo servem para nos fazer pensar, numa apreciação perfunctória, se há reais condições de condenação de Jair Bolsonaro do crime de genocídio... Considerando o que aqui ficou resumidamente dito, e por mais considerações de irresponsabilidade que possam ser feitas relativamente ao discurso, posições e ações destas duas figuras presidenciais, não nos parece estarem preenchidos os pressupostos para o cometimento do crime de genocídio…. pelo que será, pensamos, uma ação condenada ao fracasso, do ponto de vista jurídico.
Claro que outras portas parecem ser mais fáceis de abrir: ação coletiva de responsabilidade civil do Presidente pode ser uma delas.



quarta-feira, 25 de março de 2020

O DEVER DE OBEDIÊNCIA E O DEVER DE RESPEITO PELA AUTONOMIA TÉCNICA


 



O PODER DE DIREÇÃO DO EMPREGADOR E O DEVER DE OBEDIÊNCIA NO PÚBLICO E PRIVADO.  DESMISTIFICAÇÕES

 

O termo subordinação (oriundo do latim subordinatio – o qual significa submissão, sujeição) revela uma condição imposta a alguém, implicando numa situação de dependência em relação a outras pessoas, as quais terão autoridade para emitir ordens que deverão ser cumpridas pelo sujeito que se encontra naquela condição.

Tradicionalmente, a doutrina relacionava os elementos (daquela definição legal) “autoridade” e “direção” à subordinação. No entanto, no atual Código do Trabalho, o termo “direção” foi suprimido, deixando a subordinação do trabalhador de ser referenciada apenas pelos dois citados elementos, aludindo-se a um elemento novo – a organização.

Logo, a subordinação jurídica traduz-se num elemento distintivo fundamental do contrato de trabalho, uma vez que se pode afirmar a existência de um contrato de trabalho quando a atividade do trabalhador for desenvolvida com sujeição à autoridade e aos poderes do empregador.

Mas, note-se, o mais relevante é que cabe à entidade empregadora coordenar tal atividade do trabalhador tendo em vista a obtenção da finalidade produtiva.

O poder diretivo do empregador encontra previsão legal no artigo 97º do Código do Trabalho. Conforme enuncia o citado preceito legal, o poder de direção do empregador é aquele pelo qual compete a este estabelecer os termos em que a atividade laboral será prestada. Dessa forma, o empregador emitirá diretrizes ao trabalhador.
Portanto, o poder diretivo desdobra-se em poder determinativo da função, o qual designa a faculdade do empregador de atribuir funções ao trabalhador (nos moldes do artigo 118º, nº 1, do CT), e o poder conformativo da prestação – sendo a faculdade da entidade empregadora de dar ordens e instruções, visando à concretização da prestação e a sua adequação aos fins empresariais (ou seja, estabelecer os termos da prestação, conforme enuncia o artigo 97º), sem colidir com o dever de respeito da autonomia técnica do trabalhador, como melhor veremos adiante.
É nesse último desdobramento mencionado que reside a importância do poder de direção para o tema da desobediência. Esse conteúdo de conformação da atividade laboral do poder diretivo encontrará, como correlativo na esfera do trabalhador, o dever de obediência (nos moldes do artigo 128º, nº 1, alínea e) do CT).

O poder de direção traduz-se no exercício do direito potestativo, na medida em que o empregador emite comandos unilaterais, os quais correspondem a um estado de sujeição do trabalhador (revelado através do dever de obediência).

Mas até onde vai este dever de obediência, ou se preferimos, até onde vai este poder de direção do empregador?

Dependendo do tipo de trabalhador de que estejamos a falar, ou seja, da respetiva categoria profissional, já que no setor privado há contratados que são meros executores de tarefas eminentemente administrativas e outros há cujas tarefas têm no seu núcleo essencial funções de elevada tecnicidade, onde a autonomia técnica jamais poderá ser beliscada.

Assim, há determinados trabalhadores que possuem uma autonomia técnica inerente à atividade que prestam, pelo que a sujeição ao poder de direção do empregador não prejudicará aquela, conforme enuncia o artigo 116º do Código do Trabalho. Portanto, trabalhadores dotados de autonomia técnica também são sujeitos passivos do poder de direção da entidade empregadora, mas a diferença entre eles e os demais trabalhadores residirá na abrangência do exercício de tal poder, que não emitirá ordens ou instruções técnicas que prejudiquem a autonomia na execução da atividade.

A ideia de “ordem” sugere a existência de uma autoridade ou direito de proferi-la, enquanto a ideia de “obediência” é a deferência diante da referida autoridade.

Dito isto, sintetizaremos que as ordens e instruções do empregador também são restringidas pela autonomia técnica de certos trabalhadores, conforme expressamente dispõem os artigos 116º e 127º, nº 1, alínea e) do Código do Trabalho.

As ordens e instruções do empregador não podem, ainda, ser contrárias à lei (em geral), logo o empregador não pode proferir comandos eivados de ilegalidade e se o fizer o trabalhador pode e deve exigir que essa ordem lhe seja dada por escrito pois só desse modo se pode excluir, ele próprio, de eventual responsabilidade.

Finalmente, mas não menos relevantes (apenas mais abrangentes), também há os limites impostos pelo artigo 128º, nº 1, alínea e) do CT, sendo que esse dispositivo, restringe o dever de obediência do trabalhador às ordens e instruções que não sejam contrárias aos seus direitos e garantias.


E na Administração Pública como é?

Na Administração Pública diremos que o poder de direção ganha maior relevo, por um lado, o dever de obediência também, mas onde o respeito pela autonomia técnica dos seus quadros superiores, técnicos superiores, inspetores) também se destaca de modo especial, sobretudo porque os serviços do Estado estão todos vinculados ao respeito pelo princípio da legalidade.

A a organização e o eficiente funcionamento dos serviços públicos constituem um interesse que deve ser especialmente tutelado e uma tal proteção impõe que na Administração Pública vigore uma relação de subordinação ou hierarquização que atribua a uns a competência e a responsabilidade de decidir e ordenar e a ordenar a outros o dever de obedecer e executar.

Mas no caso da Administração Pública a ordem, a instrução tem de ser legítima formal e materialmente. Isto é, os seus pressupostos formais são a competência de quem emite a ordem ou instrução, ou seja, quem emite a ordem ou a instrução tem de ter competência atribuída diretamente por lei ou tem de exercer esse poder de direção depois dele lhe ter sido delegado, ou subdelegado por quem tenha a competência originária ou delegada e essa delegação de poderes ou subdelegação esteja em vigor, o que deixa de ocorrer em situação de vacatura do delegante ou subdelegante.

Além dos requisitos da competência, a instrução e ordem para ser legítima tem de ser intrinsecamente conforme à lei.

Assim, face a uma ordem ou instrução legítima, ou seja, por quem tenha competência formal e sendo conforme ao direito e lei, então daí resulta o dever de obediência.

Caso haja fundadas dúvidas por parte do inferior hierárquico de que a ordem ou instrução tenha sido dada por quem não detenha a competência, deverá solicitar-lha por escrito, porquanto só deste modo verá excluída a sua própria responsabilidade, o mesmo sucedendo se a ordem puder ser ilegítima porque violadora da lei e do direito.

E onde colocar o dever de respeito da autonomia técnica do trabalhador em funções públicos, independentemente da natureza do seu vínculo?

Os deveres do empregador público encontram-se elencados no artigo 71.º, alínea e) da LTFP abrangendo, designadamente, a garantia das condições de trabalho e pagamento de remunerações, o respeito pela autonomia técnica do/a trabalhador/a e a promoção da sua produtividade assim como a garantia de segurança e saúde no trabalho.

Ou seja, o empregador público está proibido de dar ordens ou instruções que colidam com a autonomia técnica do trabalhador cujas funções sejam de grau de complexidade 3, sob pena de estar a violar um dos seus mais relevantes dos seus deveres, inexistindo qualquer dever de obediência pelo trabalhador quanto a um qualquer tipo de instrução que ponha em causa essa autonomia.

Em suma, a existência de uma subordinação jurídica do trabalhador ao empregador público, tal não afeta a autonomia técnico-profissional do trabalhador (sendo que nesta lógica o artigo 71.º/1 e) LGTFP refere expressamente a obrigação do empregador público respeitar a autonomia técnica do trabalhador), não obstante serem-lhe impostos um conjunto de deveres gerais no exercício da sua atividade (artigo 73.º LGTFP), bem como um regime de incompatibilidades e impedimentos (artigos 19.º a 24.º LGTFP).

 

O RELEVO DA AUTONOMIA TÉCNICA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


É um dos mais relevantes deveres impostos ao empregador público, como previsto na alínea e) do artigo 71.º da LGTFP. Porquê? Porque do seu respeito depende uma Administração Pública forte, competente, defensora dos direitos dos cidadãos, respeitando em primeiro lugar, como é seu dever, o princípio da legalidade.



Relativamente ao direito de exprimir a opinião técnica e o pensamento em matéria de serviço, o artigo 6.º do RCTFP previa o reconhecimento, no âmbito do órgão ou serviço, da liberdade de expressão e de divulgação do pensamento e opinião, com respeito dos direitos de personalidade do trabalhador e da entidade empregadora pública, incluindo as pessoas singulares que a representam, e do normal funcionamento do órgão ou serviço, direito esse que, naturalmente se encontra intimamente ligado ao dever de prossecução do interesse público, previsto no artigo 73.º, n.º 2, alínea a) da LGTFP.

Com efeito, o trabalhador que exerce funções públicas tem o direito/dever de exprimir a sua opinião técnica e o pensamento em matéria de serviço, por forma a melhor prosseguir o interesse público a que está vinculado, sem prejuízo da obrigação de acatar ordens legítimas hierarquicamente superiores e que igualmente prossigam o interesse público, ainda que de outra forma.

Com a entrada em vigor da Lei n.º 35/2014, este diploma legal veio remeter para o Código do Trabalho, em especial o artigo 4.º, n.º 1, alínea b), no que respeita, nomeadamente, às matérias relativas aos direitos de personalidade, pelo que se aplica aos trabalhadores em funções públicas, o artigo 14.º do Código do Trabalho, relativo à liberdade de expressão e de opinião, entre outros.

Quanto ao direito de reclamar perante ordens que considere ilegais, o mesmo vem previsto no n.º 2 do artigo 271.º da CRP, bem como no artigo 177.º da LTFP.

Com efeito, apesar da presunção de legalidade das ordens e instruções emanadas pelos superiores hierárquicos, é excluída a responsabilidade disciplinar dos trabalhadores que atuem no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, quando previamente delas tenham reclamado ou exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito.

Assim, considerando ilegal a ordem ou instrução recebidas, o trabalhador pode manifestar-se de três formas: pode reclamar, fazendo expressa menção da ordem ou instrução que reputa ilegal; pode pedir a sua transmissão ou confirmação por escrito; ou, quando a decisão da reclamação ou a transmissão ou confirmação da ordem ou instrução por escrito, não tenham lugar dentro do tempo em que, sem prejuízo, o cumprimento destas possa ser demorado, o trabalhador pode comunicar, também por escrito, ao seu imediato superior hierárquico, os termos exatos da ordem ou instrução recebidas e da reclamação ou do pedido formulados, bem como a não satisfação destes, executando seguidamente a ordem ou instrução – cfr artigo 177.º/3 da LGTFP.

sexta-feira, 20 de março de 2020

AINDA SOBRE O TELETRABALHO ... EM TEMPOS DE NORMALIDADE E ... EM TEMPOS DE EMERGÊNCIA









DEFENDO HÁ MUITO O TELETRABALHO, PARCIAL OU NÃO, NALGUMAS PRESTAÇÕES LABORAIS, QUER NO SETOR PRIVADO, COMO NO PÚBLICO


O teletrabalho pressupõe a existência de um contrato que estabeleça e regule as condições laborais em que se desenvolve o teletrabalho, podendo este ocorrer a partir de casa do(a) trabalhador(a), em centros de teletrabalho, escritórios satélite, teletrabalho móvel, escritórios partilhados, offshore (teletrabalho transfronteiriço) e assumir uma modalidade a tempo inteiro, tempo parcial, em alternância (alguns dias por semana) ou ocasional.
A delimitação da modalidade de teletrabalho passa pela caraterização de três aspetos: o local de trabalho, o tipo de ligação entre o empregador e o trabalhador e a natureza jurídica do vínculo estabelecido entre as partes.



O teletrabalho, em regra, é realizado no domicílio do trabalhador, sendo esta a primeira e a mais divulgada modalidade de prestação de trabalho à distância, face à facilidade na sua implementação e ao reduzido investimento a cargo do empregador, considerando a possibilidade de aproveitamento dos recursos existentes no domicílio do trabalhador, designadamente internet e, em muitos casos, até, computador pessoal.
O teletrabalho subordinado, exercido no domicílio do trabalhador, coloca em questão as regras do Direito de Trabalho quanto à duração do trabalho, à conciliação do tempo de trabalho com o tempo livre e tem repercussões nos direitos de personalidade dos trabalhadores. Admite-se que a flexibilidade horária, além das potenciais vantagens que apresenta, potencie a prestação de trabalho para além dos períodos normais de trabalho. Por um lado, o trabalhador perde, tendencialmente, o controlo do tempo de trabalho. Propicia-se, ainda, o aumento da pressão profissional, sendo determinante para tal pressão o facto de o teletrabalhador estar permanentemente contactável.



Na doutrina tem-se afirmado que o teletrabalho se traduz, para as empresas, em ganhos de produtividade e competitividade, redução do absentismo e da rotatividade, menor exposição à incidência de fatores externos que colocam em causa o funcionamento da empresa (como o caso das greves). Há quem considere que os níveis de produtividade, tendencialmente, aumentem devido à inclusão de uma política de gestão por objetivos.

O teletrabalho afeta positivamente a atratividade da organização, a otimização dos espaços disponíveis na empresa e a compressão de despesas com as infraestruturas e com o pessoal.


Com a adoção do teletrabalho flexibiliza-se a estruturação da jornada de trabalho, permitindo-se uma gestão eficaz dos fluxos de trabalho, e potencia-se a realização de trabalho por objetivos.

Portugal foi o primeiro país a nível europeu a disciplinar juridicamente a modalidade de teletrabalho. O regime jurídico do teletrabalho teve a sua primeira consagração legal nos artigos 233.º a 243.º da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, que aprovou o Código do Trabalho, entretanto já revogado. Por sua vez, a Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho, regula o teletrabalho nos artigos 165.º a 171.º, sem relevantes alterações face ao anterior regime.

No Código do Trabalho, o teletrabalho é definido como a prestação laboral realizada com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação (artigo 165.º do CT), estipulando-se que para se exercer a atividade no regime de teletrabalho seja necessária a celebração de um contrato de prestação subordinada de teletrabalho (artigo 166.º do CT).

Mas atenção, no setor público, há alguns trabalhadores que são nomeados e para estes não se celebrará qualquer contrato. A possibilidade de exercício de funções em teletrabalho, nestes casos, implicará a aceitação por escrito de todos os trabalhadores, onde deverão estar consagradas as condições concretas desse exercícios, meios a disponibilizar pela empregadora e meios a disponibilizar pelos trabalhadores.

O Código do Trabalho limitou a regulamentação ao teletrabalho subordinado (artigos 165.º e 166.º, n.º 1), ou seja, aquele que se realiza em regime de subordinação jurídica, sob ordens e direção do empregador.

O Código do Trabalho prevê a igualdade de tratamento do trabalhador em regime de teletrabalho, pretendendo-se evitar que os teletrabalhadores sejam desfavorecidos comparativamente com os demais trabalhadores: o trabalhador em regime de teletrabalho tem os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores, nomeadamente no que se refere à formação e promoção ou carreira profissionais, aos limites do período normal de trabalho e outras condições de trabalho, segurança e saúde no trabalho e reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional (artigo 169.º, n.º 1).




AS LIDERANÇAS DEVEM AJUSTAR-SE AOS NOVOS TEMPOS E ABANDONAR O MODELO LABORAL DO SÉCULO XIX. O TELETRABALHO EXIGE, SOBRETUDO, MATURIDADE E COMPETÊNCIA DOS LÍDERES/GESTORES



Defendo há muito este regime na Administração Pública, sabendo que ele depende, naturalmente, do exercício dos poderes discricionários que no assunto detêm. Todavia, nas prestações laborais cujas funções sejam eminentemente produzir relatórios, pareceres, contabilidade, gestão financeira, o regime de teletrabalho no setor público parcial tem enormes vantagens que acredito se refletiriam na despesa pública, na produtividade, na motivação no trabalho.
Funções de inspeção, auditoria, contabilidade, mera emissão de pareceres/informações podem bem, parcialmente pelo menos, ser prestadas em casa, num regime rotativo [por exemplo de 2 vezes por semana].

Liderar equipas tradicionais e equipas virtuais é diferente. Mas o mundo laboral privado, sobretudo nas grandes organizações [multinacionais] demonstrou poder ter ganhos de eficiência, qualidade e motivação no trabalho.
No modelo de trabalho tradicional, os estilos de liderança baseiam-se na gestão e no controlo presencial do trabalhador durante a realização do seu trabalho, num modelo hierarquizado presencial e direto.
Com a emergência do teletrabalho, este modelo de gestão não pode ser feito nos mesmos termos, embora as novas tecnologias possam permitir uma certa aproximação aos princípios do modelo tradicional. De facto, devido à natureza da modalidade de teletrabalho, a “presença” do empregador será sempre assegurada através da utilização de tecnologias de informação e comunicação, e com inteligência, espirito de liderança, fixando objetivos claros e com potenciação de comunicação por vídeo-chamadas, sempre que necessário, como se de uma presença física se tratasse.



Considerando que à modalidade de teletrabalho está subjacente o recurso a tecnologias de informação e de comunicação, enquanto ferramenta de trabalho, não oferece dúvidas a constatação de que estes instrumentos de trabalho podem desempenhar uma dupla função na supervisão do comportamento e do desempenho dos teletrabalhadores e, simultaneamente, facilitar a interação entre o teletrabalhador, o superior hierárquico e os colegas de trabalho.

No que concerne à supervisão dos trabalhadores, de acordo com os objetivos definidos pelo gestor, as práticas de supervisão e controlo podem reconduzir-se a três modalidades: supervisão remota online, avaliação da execução dos objetivos pré-definidos ou avaliação dos resultados do trabalho. A escolha da sua finalidade depende das estratégias de gestão da entidade empregadora, desde que sejam salvaguardados os direitos de personalidade dos trabalhadores.



Diria que uma relação laboral baseada na autonomia e confiança nos trabalhadores é o atributo vital de um verdadeiro gestor/líder com capacidade de liderança de equipas, em detrimento do que designa de um estilo Big Brother existente no modelo tradicional da prestação do trabalho na sede do empregador, por isso, entendo que a gestão dos teletrabalhadores à distância pode ser efetuada eficazmente e de forma semelhante à gestão presencial dos trabalhadores, as prestações de trabalho que admitam este recurso, e são muitas!

Daí que assuma que uma das mudanças apresentadas em relação ao estilo de liderança é aquela que sugere a passagem de um sistema de gestão baseado no processo, isto é, no controlo do tempo e no modo de execução para um sistema baseado nos resultados do trabalho, modificação que implica uma diminuição do controlo externo efetuado pelo gestor e um aumento do controlo efetuado pelo próprio teletrabalhador.



Assim, o modelo de gestão tradicional, baseado no contacto presencial, na supervisão direta, na hierarquia e autoridade, é substituído por uma gestão virtual em que se deve efetuar a definição prévia dos objetivos e consequente avaliação dos resultados, fomentar uma comunicação bidirecional eficaz e frequente com os teletrabalhadores, integrando o contacto presencial com a comunicação eletrónica, fornecer um feedback regular e fomentar a confiança mútua entre as partes. Por isso, a definição clara de objetivos assume um papel importante mas, também, o mais difícil nas equipas virtuais. O empregador deve efetuar uma definição clara, mensurável e atingível dos objetivos que direcionem a atuação dos trabalhadores, estabelecendo o resultado a atingir, o nível de qualidade do serviço, o tempo de execução e fornecendo instruções acerca do trabalho a desenvolver.
Mas a utilização desta modalidade de prestação do trabalho exige cada vez mais lideres preparados, competentes e capazes desta tarefa de supervisão, capazes de orientar, capazes de definir objetivos e isso exige competência.

OS FAMOSOS MEIOS QUE DEVEM EXISTIR PARA A IMPLEMENTAÇÃO  DO TELETRABALHO





Muitas organizações, sobretudo no setor público, alheadas da aplicação do regime de teletrabalho, mesmo em serviços que o permitiriam claramente, pelo menos parcialmente, mas, sobretudo, lideradas por gestores do século XIX, não sabem caracterizar o regime e, em consequência, não admitem sequer estuda-lo.

Contudo, releva sublinhar a importância de não confundir o teletrabalho com um "conceito inventado" de "trabalho em casa". É que não existe "trabalho em casa" no código de trabalho e na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas que, nesta parte, remete para o Código de Trabalho. Se a prestação de serviço, total ou parcialmente, for passível de ser prestada em casa, com recurso às novas tecnologias, a isso se chama teletrabalho.

É que, com a emergência do teletrabalho podem ser utilizadas diversas tecnologias de informação e comunicação como as câmaras de vídeo, os microfones, os telefones, o e-mail, a internet, a partilha de ficheiros através do servidor do empregador, tudo feito por computador e as empregadoras podem usar todos estes meios ou apenas alguns deles, desde que a prestação do trabalho possa ser feito por esta via.



Apenas chamamos a atenção para o facto de a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao ter aprovado o Código de Conduta da Organização Internacional do Trabalho sobre a proteção dos dados pessoais dos trabalhadores, relevam os seguintes princípios:
a) os trabalhadores alvo de monitorização devem ser informados com antecedência acerca da finalidade, métodos utilizados e informações a recolher, devendo o empregador minimizar a intrusão na privacidade dos trabalhadores (ponto 6.14, n.º 1);
b) a monitorização contínua só deve ser permitida no âmbito da proteção da saúde, segurança ou propriedade (ponto 6.14, n.º 2),
c) os dados pessoais recolhidos para garantir a segurança e o bom funcionamento dos sistemas automatizados de informação não devem ser utilizados para controlar o comportamento dos trabalhadores (ponto 5.4),
d) os dados pessoais recolhidos através da monitorização eletrónica não devem ser os únicos elementos da avaliação do desempenho dos trabalhadores (ponto 5.6).



E QUE DIZER DO TELETRABALHO NESTE ESTADO DE EMERGÊNCIA?


Aqui foi instituído o regime de teletrabalho, quer no setor público, como no setor privado, desde o Decreto-Lei-10-A/2020, de 13 de março, imposto pela entidade empregadora, ou, não o sendo, por requerimento do trabalhador, e sem acordo do empregador. Aqui, todas as regras gerais do teletrabalho devem ser flexibilizadas, devendo todos saber interpretar o espirito destes regimes especiais e temporários.


Mas não estamos numa situação de normalidade, pelo que neste Estado de Necessidade em que nos encontramos, o recurso ao teletrabalho deixou de ser uma possibilidade negocial e passou a resultar imperativamente da lei, desde que e sempre que as funções desempenhadas o permitam, em especial desde que os trabalhadores não sejam trabalhadores de serviços essenciais, dispensando-se todas as formalidades que, numa situação de normalidade seriam exigíveis para o instituir, em particular a celebração de um contrato de prestação subordinada de teletrabalho (artigo 166.º do CT).

Porém, com o Decreto Presidencial n.º 14-A/2020, de 18 de março que declarou o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, concretizado na Lei n.º 1-A/2020 de 19 de março que adotou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, foram ratificados os efeitos do Decreto -Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, com produção de efeitos retroativos à sua vigência, por um lado, e, por outro, foi generalizado o teletrabalho, quer na participação por meios telemáticos, designadamente vídeo ou teleconferência de membros de órgãos colegiais de entidades públicas ou privadas nas respetivas reuniões, quer prestação de provas públicas previstas em regimes gerais ou especiais pode ser realizada por videoconferência, desde que haja acordo entre o júri e o respetivo candidato e as condições técnicas para o efeito, nos termos do seu artigo 5.º, e, ainda, é referido que “… sem prejuízo das competências atribuídas pela Constituição e pela lei a órgãos de soberania de caráter eletivo, o disposto na presente lei, bem como no Decreto -Lei n.º 10 -A/2020, de 13 de março, prevalece sobre normas legais, gerais e especiais que disponham em sentido contrário, designadamente as constantes da lei do Orçamento do Estado…”.


Quando for publicada a Resolução de Conselho de Ministros as medidas serão mais concretamente determinadas.


Em suma, neste contexto de Estado de EmergênciaEstado de Necessidade o teletrabalho foi regulado excecionalmente, não exige requisitos formais, bastando que a função possa ser prestada em casa no essencial, usando contactos móveis, um computador e internet.

O TELETRABALHO EM SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA

Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março - medidas excecionais - pandemia do COVID-19...

Interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, determinar o seu sentido a fim de se entender a sua correta aplicação a um caso concreto. Além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica. No caso deste Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, no seu espírito, apreciado o seu preâmbulo, é evitar riscos de contágio, isolando em casa todos os que possam prestar o seu trabalho nesse ambiente, independentemente da natureza da entidade empregadora. O contágio pode não ocorrer no local de trabalho, mas no percurso até lá, pelo que impor a um trabalhador (seja qual for a natureza da entidade empregadora) deslocações desnecessárias e não fundamentadas, quando a prestação do serviço, no concreto, possa ser feita em casa, é, além de irresponsável, ilegal, atento os artigos 29.º e 10.º do diploma citado.

Recordo, ainda, que a saúde pública é um bem fundamental e constitucionalmente protegido. O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), relativo à saúde, consagra, na sua versão atual, a proteção da saúde como um dever, mas, sobretudo, como um direito de todos, realizado através de um serviço nacional de saúde (SNS) universal, geral.

Na verdade, terá de ser o empregador a fundamentar, no caso concreto, quais os trabalhadores, identificando-os, atenta a natureza da respetiva prestação laboral, tarefas ou funções, cuja presença física no local de trabalho é imprescindível: exemplos disso serão os trabalhadores responsáveis por processar remunerações, por desempenharem funções de vigilância e fiscalização, sobretudo destas medidas de exceção, pessoal de prestação de cuidados de saúde, pessoal das autoridades de segurança interna, entre outros do mesmo tipo.

Então, qual o âmbito de aplicação deste diploma legal?

É um diploma que, por razões de eficácia, é transversal: aplica-se ao setor público, ao setor privado, tem regras processuais para os tribunais, para os sujeitos processuais e regula proibições genéricas a cidadãos em geral. É o que diz ser: um diploma de emergência.
Depois prevê um regime excepcional, assim denominado porquanto tem impacto na despesa pública e que, por isso, se aplica exclusivamente à Administração Pública em sentido amplo, e que consta dos seus capítulos II e III, sendo referente à contratação pública e à gestão de recursos humanos com impactos financeiros e isso mesmo é explicado no respetivo preâmbulo, onde se pode ler que se torna "... necessário estabelecer um regime excecional em matéria de contratação pública e realização de despesa pública, bem como em matéria de recursos humanos, conciliando a celeridade procedimental exigida com a defesa dos interesses do Estado e a rigorosa transparência nos gastos públicos...".

Em todo o caso, o Capítulo IV é dirigido à Administração Pública Escolar, contendo uma proibição dirigida a estudantes, ou seja a cidadãos. Também o Capítulo V se dirige a cidadãos.
O Capítulo VI é destinado aos profissionais forenses.
O Capítulo VII volta a ser dirigido a cidadãos e o Capítulo VIII regula as medidas de proteção social na doença e na parentalidade, aplicável tanto a trabalhadores com vínculo de emprego público, como a trabalhadores do setor privado.

Já o Capítulo IX se destina-se aos trabalhadores independentes e o Capítulo X, regula, em geral, formas alternativas de trabalho no momento de exceção que se vive, sendo aplicável a qualquer trabalhador sujeito a prestação de horário de trabalho, ou seja, trabalhador por conta de outrem: quer do setor público, como no privado. Neste âmbito, o artigo 29.º permite que o empregador imponha, querendo, o teletrabalho a todos, mas não sendo o caso, permite, ainda, ao trabalhador requerer essa forma de prestação de trabalho, sem necessidade de acordo do empregador. E neste caso, para se indeferir um requerimento de teletrabalho é necessário que o empregador fundamente de modo especial, e no caso concreto, quais as tarefas específicas atribuídas ao trabalhador requerente que exigem a sua presença física no local de trabalho.

E o que é o teletrabalho?
Nos anos 70, no contexto da crise petrolífera e consequente necessidade de diminuir o consumo de combustíveis nas deslocações diárias e respetivos problemas de trânsito, começou a estudar-se a possibilidade de levar o trabalho ao trabalhador em vez do trabalhador ao trabalho. Este fenómeno, ainda hoje designado pelos norte-americanos como telecommuting para designar o teletrabalho, poupa a dupla viagem diária desde casa ao escritório e desde o escritório a casa.

Etimologicamente, o substantivo “teletrabalho” deriva da junção do advérbio grego “téle”, que significa “longe”, “ao longe”; e do verbo latino “tripaliare” que significa “trabalhar”. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1990, definiu teletrabalho como “...uma forma de trabalho em que a) o trabalho é realizado num lugar afastado da sede principal ou do centro de produção, separando-se assim o trabalhador do contacto pessoal com os trabalhadores; e b) e que implica uma nova tecnologia que permite a separação e facilita a comunicação...".

O paradigmático Acordo-Quadro Europeu sobre o Teletrabalho, assinado no dia 16 de julho de 2002 pelos principais parceiros sociais europeus, consagra uma definição genérica e ampla de teletrabalho, com o intuito de abranger várias modalidades desta forma de trabalhar subordinado. Estamos assim perante “...uma forma de organização e/ou execução do trabalho, através do recurso às tecnologias de informação, no contexto de uma relação laboral, em que a atividade contratada, embora possa ser executada nas instalações do empregador, é exercida fora destas instalações, de forma regular...”.

Pergunta-se: é sensato dizer, no atual contexto de exceção, que não há condições técnicas para a prestação de trabalho em teletrabalho?
Desde logo pergunta-se quais serão essas condições técnicas? Como já se percebeu, basta um computador pertencente à entidade empregadora ou, na sua ausência, a autorização e a aceitação do trabalhador em ceder um que lhe pertença, disponibilizando ao empregador o necessário serviço de internet, de modo a poder manter a comunicação com as respetivas chefias. Estas são as únicas condições técnicas a acautelar, no atual contexto de exceção em que todos nos encontramos. Sabe-se, obviamente, que em qualquer situação de emergência poderão sempre ser imediatamente chamados às instalações da entidade empregadora.

De resto, no caso das entidades empregadoras públicas, o teletrabalho devia estar regulado nos respetivos IRCT, pelo que não estando, ele apenas pode ser implementado com a autorização de todos os trabalhadores. No caso das carreiras na Administração Pública que sejam tituladas por nomeação, só mesmo com autorização de cada um dos trabalhadores, nos termos dos artigos 68.º e 69.º/1 da LGTFP e artigo 165.º a 171.º do CT, já que os instrumentos de regulamentação coletiva são apenas fonte de direito específica do contrato de trabalho em funções públicas.

Não estando num quadro de normalidade, o teletrabalho acabou regulado, neste período transitório e de excepção, permitindo a sua determinação unilateral pelo empregador ou a requerimento do trabalhador, sem necessidade de acordo do empregador, tendo este, ao contrário, se o quiser impedir, fundamentar especialmente a sua recusa no caso concreto, explicitando as concretas funções atribuídas ao trabalhador que imponham a sua presença no local de trabalho.

Em tempo excecional, medidas excecionais e bom senso excecional!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

RECORDAR COMO TUDO COMEÇOU E QUE A HISTÓRIA É CICLICA



A Paz de Vestefália (Westfalen, na Alemanha) que, em 24 de Outubro de 1648, pela publicação dos Tratados de Münster e Osnabrück, põe fim à Guerra dos Trinta Anos, compreendia cláusulas territoriais, constitucionais e religiosas.
Os tratados de Vestefália lançaram as bases de uma organização da Europa Central que subsistiu nas suas grandes linhas até às conquistas da Revolução Francesa e de Napoleão, num sentido de atomização. Só trezentos anos depois se enfrenta na Europa, por sua própria determinação, uma nova tarefa de integração. Não importa se o ritmo é mais ou menos acelerado se a intenção é firme e a continuidade segura. O compromisso é exigente porque os Estados devem chegar a sacrificar uma parte do que tem sido entendido como domínio exclusivo da sua soberania em prol de um interesse coletivo.
Foi a geração política de 1950 que lançou as bases concetuais do novo processo de integração da Europa ocidental quando os valores do ideal europeísta se fundamentaram num mesmo espírito cultural e civilizacional, enformados pela paz, bom governo e bemestar sócioeconómico dos povos, deixando esse impulso às gerações das décadas seguintes.
Robert Schuman abre caminho com a sua Declaração de 9 de Maio de 1950 para a paz, a liberdade, a justiça e o desenvolvimento equitativo dos povos, marcando o caminho e os limites da futura integração europeia.
Os membros fundadores que aderiram ao projeto e assinaram o Tratado foram: a França (Jean Monnet e Robert Schuman), a Alemanha (Konrad Adenauer), a Itália (Alcide de Gasperi), a Bélgica (PaulHenri Spaak), a Holanda (Joseph Luns) e o Luxemburgo (Joseph Bech), sendo que a 23 de Julho de 1952, pôsse em marcha a primeira Comunidade supranacional de caráter económico, primeira etapa do processo de integração europeia, limitada ainda a um mercado comum no setor siderúrgico.
Se o êxito da CECA contribuiu para consolidar definitivamente o processo de integração económica europeia, seguemse em 25 de Março de 1957 a criação da Comunidade Europeia da Energia Atómica (C. E. E. A. ou Euratom), para o desenvolvimento pacífico da energia atómica, e a Comunidade Económica Europeia (C. E. E.), organização europeia de integração geral, pelos Tratados de Roma, que entraram em vigor em 1 de Janeiro de 1958, com os mesmos países fundadores. A CEEA foi pensada para incentivar a investigação e desenvolver a indústria europeia através da energia nuclear, sempre com fins pacíficos. A CEE surgiu porque as vantagens de um mercado comum não poderiam ser atingidas sem uma cooperação de Estados que assegurasse a estabilidade monetária, a expansão económica e o progresso social.
Esta história ajuda-nos a compreender melhor a relevância da união e a importância da força de os Estados terem a capacidade de terem projetos comuns de desenvolvimento integrado, sobretudo num tempo em que nascem sentimentos nacionalistas em vários Estados um pouco por todo o mundo.
A história ajuda-nos a compreender como fomos capazes de ultrapassar crises, sejam económicas, financeiras, bancárias, morais, éticas ou sociais, e ajudam-nos a, por isso mesmo, enfrentarmos novas crises, porque a história é cíclica.


 

domingo, 9 de fevereiro de 2020

O VALOR DA CONFIANÇA!

A confiança perdida é difícil de recuperar. É preciso acarinha-la e rega-la de novo. Ela não cresce facilmente como as unhas.
Johannes Brahms

O filósofo grego Aristóteles dizia que os seres humanos são como animais que precisam viver na presença uns dos outros. Seria algo relacionado ao próprio instinto de sobrevivência que nos atrai uns aos outros e nos motiva a viver felizes em comunidade, porque assente numa base de confiança mínima.

Foi a confiança, aliás, a ferramenta fundamental que permitiu ao capitalismo desenvolver-se ao longo dos séculos. No livro Sapiens, o historiador Yuval Noah Harari explica que a ideia de progresso fez com que as pessoas passassem a confiar mais no futuro e também umas nas outras. 

E esta confiança levou não apenas os capitalistas a terem coragem de reinvestir os lucros na produção, mas também criou uma construção mental coletiva que fez com que as pessoas passassem a considerar ouro ou dólar como moedas de valor. Podemos facilmente imaginar o que teria sido da sociedade ocidental sem esse contrato social de confiança!

Na Dinamarca, que costuma apresentar frequentes altos índices relacionados à felicidade, existem 8 fatores explicativos, entre eles o da confiança. No país, as pessoas tendem a confiar umas nas outras, e isso acontece das mais variadas formas, de resto extensíveis ao dia-a-dia.

A confiança, ou melhor a sua ausência, anda muitas vezes de mão dada com o egoísmo. Quando alguém olha estritamente para o seu umbigo e é incapaz de se ver retratado no espelho, por regra não é digno nem de confiança nem de esperança em conseguir transmitir às novas gerações os valores que são os únicos capazes de contribuir para o progresso na humanidade: e um deles é o valor da confiança.

E tudo isto está relacionado com o direito, porque o direito é indissociável da vida individual e em comunidade.

O valor da confiança é um dos pilares essenciais da regulação da vida em comunidade. É estrutural na vida nas relações privadas dos cidadãos, estrutural na vida em comunidade, estrutural na vida dos Estados e na regulação das relações interestaduais.

Todos os dias nos deparamos com situações que decorrem precisamente da falta confiança (desconfiança). Ninguém já confia em ninguém, seja nas relações laborais quotidianas, seja na rua, seja onde for. E esta tendência tem vindo a agravar-se cada vez mais deixando sequelas de natureza vária, seja ao nível da saúde mental de cada um de nós, seja ao nível político, económico ou social. Porquê? Porque a confiança é o cimento social, é o elo de ligação das sociedades e da ação coletiva.

Termino referindo que a confiança funciona entre os indivíduos e nas sociedades como o óleo funciona num motor de um carro. É o lubrificante da harmonia e da qualidade das relações humanas. Sem níveis de confiança razoáveis as sociedades caminharão para o caos e a infelicidade individual e coletiva.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

A HORA DA LIBERDADE ...


A TODOS OS HOMENS E MULHERES QUE NOS DIAS DIFÍCEIS DE HOJE CONTINUAM A HONRAR OS HOMENS QUE, NO DIA 25 DE ABRIL DE 1974, ARRISCARAM A VIDA PELO FUTURO!

Poucos, mesmo muito poucos, sabem que sou como sempre fui: inconformada e persistente na defesa e prossecução da ideia de Justiça, Igualdade, Liberdade e não misturo isso nunca com relações de Amizade ou outras.

Nasci assim!

Não há Futuro sem Igualdade, sem Justiça e sem Liberdade.

Aqueles, poucos, que me conhecem bem sabem que, em circunstância alguma, independentemente das minhas convicções, independentemente das minhas relações interpessoais ou quaisquer outras circunstâncias, respeito profundamente a liberdade de pensamento, a igualdade de oportunidades, a capacidade de ouvir e ponderar, pois só com elas a Justiça pode existir plenamente e só com elas o Mundo Pula e Avança.
É difícil? Muito. Mas o progresso é difícil, o desenvolvimento custa e vem acompanhado por todas as dores de crescimento, e a felicidade é uma ideia nem sempre alcançável facilmente, e é por isso que devemos lutar tanto por elas.

Custa dizer a um amigo que ele não tem razão? Custa.
Custa dizer a um superior hierárquico que está equivocado ou que o caminho a seguir deve ser outro? Porventura custará a alguns mais ainda.
Custa sermos os únicos numa sala a defender ideia diferente? Porventura.
É que, custa discordar em geral.
Tenho registado a incapacidade genérica para a sociedade ouvir o outro e, se for o caso, dar-lhe razão! Essa qualidade está inacessível ao comum dos mortais. Estranho? É, mas é a constatação mais real das observações que faço à sociedade. A capacidade de reconhecer o erro, recuar e dar razão ao outro é, hoje, quase uma miragem. A regra é "meter a primeira e seguir em frente, muitas vezes contra a parede!
Depois do "25 de Abril" nunca pensei que em 2019, 45 anos depois, fosse tão difícil para tantos dizer "não" e discordar. Discordar em geral de quem, em dado momento, se encontra numa alegada posição de superioridade formal.
Mas tentem! Só isso permitirá honrar a Liberdade por que muitos em todo o Mundo ainda hoje perdem a Vida!


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https://www.youtube.com/watch?v=5BQrcJKjvL0

domingo, 21 de abril de 2019

BREVEMENTE, DIRETIVA 2014/24/UE COMENTADA

Em breve será publicada a Diretiva 2014/24/UE Comentada, com jurisprudência do TJUE, por:
Eliana de Almeida Pinto, Juiz do TAC Lisboa
Julieta Ribeiro, Inspetora e Assistente Convidada da Faculdade de Direito de Lisboa,
Alberto Garcia, Jurista




domingo, 4 de novembro de 2018

GREVE, ESTATUTO DOS MAGISTRADOS, GOVERNO, AR E PR.

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[atualizado com referências a quem, além de muitos outros, também escreveu sobre o direito à greve dos magistrados, ainda que noutro contexto, com outra finalidade, outro enquadramento e diferente propósito]


"... Deve-se proporcionar uma remuneração suficiente e sustentável para permitir que o Poder Judiciário desempenhe suas funções de acordo com padrões elevados. Tal remuneração, depois de aprovada pelo Poder Legislativo para o Poder Judiciário, deve ser protegida da alienação ou má utilização. O poder de fixar a remuneração dos magistrados não deve ser utilizada como meio de exercer um controle indevido sobre a magistratura, pelo que serão de evitar sistemas que coloquem o poder judicial a "pedir" a outros poderes remunerações justas...".


Diretrizes de Latimer House para o Commonwealth sobre Supremacia Parlamentar e Independência Judicial, adotadas em 19 de junho de 1998, Diretriz II.2


O artigo 270º da Constituição da República Portuguesa prevê expressamente várias restrições ao direito de associação sindical e de greve, nada referindo quanto aos juízes e não havendo qualquer outra norma que restrinja o direito à greve relativamente aos mesmos, sendo certo que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.


[a mesma referência é feita na página 10 de um artigo de 28 páginas publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins]


Em suma, como refere LIBERAL FERNANDES [in Revista do Ministério Público, n.º 54, p. 85- 90, referindo-se, em conjunto, aos magistrados judiciais e do Ministério Público] a liberdade de os magistrados recorrerem à greve advém sobretudo da sua posição de dependência relativamente ao Governo quanto à evolução da sua carreira, como qualquer outro trabalhador, pelo que GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, in Constituição da república portuguesa anotada. Vol. II. pp.848, aponta a exclusão dos magistrados do âmbito de aplicação desta norma constitucional.

O
direito à greve tem dignidade constitucional, fazendo parte, aliás, dos direitos fundamentais dos trabalhadores previstos na Constituição da República Portuguesa. De resto, o direito à greve é reconhecido como um corolário do direito de associação sindical, previsto no artigo 23º, n.º 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção n.º 87 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (no seu artigo 118.º), tendo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerado, consequentemente, que o “…direito de fazer greve, que permite a um sindicato fazer ouvir a sua voz, constitui um aspeto importante para os membros de um sindicato na proteção dos seus interesses…".


No plano internacional, ressalva-se que há igualmente essa proteção, com o fulcro de tutelar um direito de toda a coletividade. A título de exemplo, citam-se os seguintes instrumentos: a DUDH (artigo 10.º); a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8.º); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º); a Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (artigo 6.º); a Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes, de junho de 1998; e os princípios gerais sobre a independência dos juízes, proclamados pela Assembleia Geral da ONU em 1985.


BERNARDO LOBO XAVIER considera a "greve" a abstenção da prestação de trabalho, por um grupo de trabalhadores, como meio de realizar objetivos comuns.


[este autor é igualmente citado sobre a sua definição de "greve" na página 4 de um artigo de 28 páginas publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins]


Ora, o artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa prescreve, assim, que “...1. É garantido o direito à greve. 2. Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito. 3. A lei define as condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis. 4. É proibido o lock-out...”.


[citação igualmente feita desta disposição constitucional, in página 4 de um artigo de 28 páginas publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins]


Em Portugal, a CRP, no artigo 57.º, n.º 3, autoriza o legislador ordinário a estabelecer as condições de prestação de dois tipos de serviços durante a greve: àqueles que visam à necessária segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como a prestação de serviços mínimos essenciais à coletividade, com o fim de satisfazer às necessidades sociais impreteríveis.


A partir desta definição e regulação e olhando para os magistrados como titulares de órgãos de soberania, é útil colocar uma concreta questão, apesar de sabermos que ela causa alguma confusão na generalidade das pessoas e parte da doutrina portuguesa, sobre saber se um titular de órgão de soberania pode/deve fazer greve. Todavia, como referi, parte da doutrina responde à questão formulada negativamente, mas fá-lo partindo de visões politicamente orientadas sobre as próprias funções exercidas pelos magistrados judiciais, enquanto titulares de órgãos de soberania.


É o caso, claro, de JORGE MIRANDA, que defende a ilegitimidade da existência de sindicatos que representem os juízes e também do próprio direito à greve sublinhando o facto de os juízes serem titulares de órgãos de soberania. Este autor, para fundamentar essas conclusões e para os equiparar, sem mais, aos restantes órgãos de soberania, defende que o estatuto dos juízes e dos demais titulares de órgãos de soberania, incluindo os aspetos remuneratórios e logísticos, entra na reserva absoluta da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea m)], pelo que o Presidente da República e os ministros se encontram exatamente na mesma posição dos juízes.

[o mesmo é referido na página 6 de um artigo de 28 páginas, publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins, bem como em inúmeros artigos publicados por Jorge Miranda, incluindo alguns artigos de opinião publicados em jornais diários e semanários nacionais, como é exemplo o publicado no "Observador", em 09/06/2017]


Sem revelar se, concretamente, após a decisão tomada em Assembleia Geral pela ASJP, decidirei fazer greve ou não, adianto discordar frontal e abertamente desta posição literal e cheia de pré conceitos de JORGE MIRANDA.
É que a Constituição estabeleceu, no artigo 270.º, a possibilidade de restrição do direito de greve a certas categorias de pessoas, não estando ali contemplados os magistrados judiciais. Dessa forma, não se poderia falar que o direito de greve é vedado aos magistrados, pois não há na Constituição qualquer autorização expressa nesse sentido.

Agora, poder-se-á dizer que as restrições e vedações aqui contempladas atingem tão somente algumas categorias de pessoas. Por isso, as categorias de cidadãos que não vejam os seus direitos satisfeitos plenamente são os militares, agentes militarizados, agentes de serviço e das forças de segurança. E não são todos os direitos que poderão ser limitados, mas somente os direitos de expressão, reunião, manifestação, petição coletiva, ser eleito para cargos políticos e associação – este último, vale assinalar, albergaria, inclusive, a restrição de participação em partidos políticos (artigo 51.º), a deslocação e a emigração (artigo 44.º), 138 a formação de comissão de trabalhadores (artigo 54.º), a liberdade sindical (artigo 55.º) e o direito à greve (artigo 57.º).

Em síntese, qualquer limitação ao seu direito constituiria uma afronta aos princípios do artigo 18.º, n.º 2 da CRP. Ressalta-se ainda, que não existe qualquer previsão legal a nível infraconstitucional que discipline a esse respeito, sendo certo que, caso advenha no ordenamento jurídico tal disciplina, esta será inconstitucional, por não encontrar respaldo nos limites impostos pela Constituição. Nessa vertente, constata-se a aplicabilidade imediata do direito de greve, em conformidade com aquele artigo 18.º, n.º 1, que estabelece que os direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis. É que há a aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantias, podendo ser invocados até mesmo mediante a ausência de lei - Vide GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da república portuguesa anotada. Vol. I. pp.382.

Aliás, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA defendem, por isso, a exclusão imediata dos magistrados do âmbito de aplicação deste artigo 270.º da CRP por não existir entre o Estado e os magistrados uma relação de trabalho típica,  in Constituição da república portuguesa anotada. Vol. I. pp.382.

Os juízes, afinal, são titulares de órgãos de soberania, sim. Mas têm, simultaneamente, uma carreira profissional que os obriga a uma total exclusividade, por um lado, a uma reserva profissional e, até, pessoal, que os limita em muitos direitos cívicos e de personalidade fundamentais, como participar mais ativamente na vida da polis, entre outras, pelo que o seu estatuto constitucional e profissional tem uma natureza híbrida ou dual que os faz circular entre a condição de trabalhadores e serem titulares de um órgão de soberania.

Claro que se trata de uma condição de trabalhador sui generis, pois que não existe a subordinação jurídica que se revela na sujeição do trabalhador, durante a prestação laboral, ao poder de direção e autoridade do empregador no âmbito organizacional laboral, mas nem por isso deixa de se tratar um magistrado como trabalhador.
Aliás, peço que me acompanhem: é ou não verdade que existe um particular e relevante ponto em que os juízes estão muito próximos dos trabalhadores propriamente ditos e que se prende com a “sua dependência económica" (um critério que tem sido cada vez mais considerado para a qualificação de uma relação como laboral), exercendo as suas funções em exclusividade, dependendo, em absoluto, da sua retribuição para poderem “viver”, como qualquer trabalhador?
E a quem compete fixar a sua remuneração? A outros órgãos de soberania, cujos atos, aliás, são julgados pelos Tribunais, numa relação esquizofrénica que, de certo modo, é contrária à ideia de separação de poderes e total independência entre eles.

É certo que o princípio da independência judicial é a independência de cada juiz singular, no exercício das funções adjudicante. De facto, no processo de decisão dos juízes deve ser independente e imparcial, capaz de agir sem qualquer restrição, influência indevida, pressão, ameaça ou interferência, direta ou indireta, de qualquer autoridade, incluindo as autoridades internas à magistratura. A hierarquia da organização judiciária não pode, pois, comprometer essa independência individual dos juízes. Todavia, a remuneração é uma peça-chave em qualquer atividade profissional para assegurar essa independência, sendo-o, por maioria de razão, na magistratura.

Mas esta aproximação dos juízes aos trabalhadores relativamente ao seu concreto estatuto sócio-profissional leva a que se possam associar sindicalmente e exercer o direito à greve, sem o que não teriam qualquer outra forma de reivindicar direitos relativos à sua carreira profissional, aliás como qualquer outro português que desempenha essa atividade profissional com caráter regular e permanente até à idade de reforma.

Não revelarei se aderirei ou não à greve decretada de 21 dias pelas ASJP, e em que termos, já que outras motivações que não estritamente as acima referidas poderão ser decisivas na minha decisão, todavia, o que pretendo, aqui , sublinhar é contrariar a ideia de que os magistrados são titulares de órgãos de soberania iguais aos senhores deputados, ministros, secretários de Estado, ou Presidente da República. Estes, de facto, "estão" deputados, ministros ou Presidente da República.

Nós não "estamos" magistrados, nós "somos" magistrados!

Ser deputado ou membro do Governo não é nenhuma profissão, apesar de parte significativa do hemiciclo ser composta por deputados que ali passaram toda uma carreira contributiva e de parte dos nossos governantes acabarem por passar parte significativa da sua idade ativa a exercer tais cargos, ininterrupta ou alternadamente. Os magistrados não. Desempenham as suas funções no âmbito do desenvolvimento desta sua carreira, assumindo todas as suas limitações, para cujo ingresso se impõem provas exigentes e para cujas promoções aos Tribunais Superiores igualmente se impõem condições muito exigentes [além das avaliações ao seu desempenho por inspeções regulares, também grau académico superior licenciatura, obras publicadas, artigos científicos publicados, aulas ministradas em estabelecimentos de ensino superior pro bono, conferências dadas...], sabendo que apenas uma pequeníssima parte conseguirá chegar lá!

Qualquer pessoa de bom senso, interessada em defender o Estado de Direito, informada [e que quer ser informada] e esclarecida é capaz de perceber isto.