domingo, 11 de fevereiro de 2018

PACTO DA JUSTIÇA.OUTRA VEZ A ESPUMA DOS DIAS …



             Face à apresentação pública de 88 medidas avulso, no âmbito de um denominado PACTO DA JUSTIÇA, como juiz na jurisdição administrativa e fiscal não posso deixar de refletir no assunto que está na ordem do dia. Julgo ter, acima de tudo, esse dever cívico. Numa época histórica em que a jurisdição administrativa e fiscal enfrenta cada vez mais litigiosidade perante uma Administração Pública e Tributária altamente agressivas, empurrando os cidadãos para uma reação obrigatória na defesa dos seus direitos fundamentais, bem como numa época em que a plena jurisdição alarga cada vez mais possibilidades de reação judiciária, sobretudo na área administrativa, é, no mínimo, confrangedor que, depois do repto do Presidente da República, o resultado de tanta reflexão entre os supostos operadores judiciários produza "apenas" aquelas 88 pobres e desgarradas medidas, apesar de algumas serem absolutamente evidentes e abundantemente diagnosticadas.
            Parece inegável que o repto de Sua Excelência o Presidente da República resulta da ideia alargada de que a justiça tem constrangimentos e dificuldades que ainda a impedem de decidir de modo mais célere, em prazo razoável, já que estaremos todos de acordo se dissermos que uma excelente decisão do ponto de vista técnico, proferida tarde demais, não realiza qualquer justiça! E isso dever-nos-á mobilizar a todos para encontrarmos reais soluções.
Para isso os juízes devem estar disponíveis.
Mas, hoje, ocupar-me-ei da apreciação da primeira e, por isso, simbólica, medida proposta: elaboração de um estudo para a eventual unificação das jurisdições, com uma necessária revisão constitucional. A primeira pergunta que assolou o meu espirito foi tentar perceber os seus fundamentos, uma vez que o propósito essencial do PACTO DA JUSTIÇA, como não pode deixar de ser, é a necessidade de serem encontradas soluções que eliminem ou minimizem os atuais constrangimentos por que passa o sistema de justiça, sem pôr em causa a qualidade das decisões jurisdicionais. E sobre isso, são conhecidas as dificuldades da Jurisdição Administrativa e Fiscal quanto a esse grave problema da necessidade da prolação de decisões em prazo razoável.
Mas a direção nacional da ASJP, a Ordem dos Advogados, a Ordem dos Solicitadores e o Sindicato dos Oficiais de Justiça conhecem as razões de tais dificuldades e constrangimentos? E ouviram os seus representados? Atuaram com mandato para uma drástica mudança destas que exige, até, uma revisão constitucional? Não seria sensato terem-no feito previamente, sobretudo sabendo, em particular a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, estar a sua direção em fim de mandato?
Saberá a direção nacional da Associação Sindical dos Juízes Portugueses que a maioria das listas que se apresentaram a votos, para a eleição de Março, e que a substituirá, defende a manutenção da dualidade de jurisdições? Ou a medida apareceu como sendo sexy e só por isso foi subscrita?
Neste contexto é pertinente questionar se leram o estudo feito o ano passado, em 2017, do Observatório Permanente da Justiça, da Universidade de Coimbra – Justiça e Eficiência – O caso dos Tribunais Administrativos e Fiscais, in: http://opj.ces.uc.pt/site/novo/?id=8795&pag=17285 ?
Não me parece, sequer, que o conheçam.
Neste estudo independente, realizado por uma das mais prestigiadas Universidades portuguesas, é referido que a reforma de 2004 do contencioso administrativo, no papel, representou um avanço significativo na concretização do artigo 20.º e 268.º/4 e 5 da Constituição da República Portuguesa que consagra o direito de acesso ao direito para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e o princípio da tutela jurisdicional efetiva. Todavia, do ponto de vista da adequação de meios e da ponderação entre a revolução que representou para a tutela dos direitos dos cidadãos, em confronto com os meios humanos necessários para lhe dar efetividade, não podemos deixar de dizer que foi catastrófica.
Até 2004, a Jurisdição Administrativa e Fiscal contava, na primeira instância, com pouco mais de 40 magistrados, pelo que foi decidido recrutar cerca de 90 juízes para fazer face à revolução que importaria essa reforma do contencioso administrativo, no que diz respeito ao aumento exponencial de litígios que previsivelmente causaria. Mesmo assim, em 2004, num total, não haveria um número superior a 130 juízes em todo o país na 1.ª instância.
O resultado não poderia ter sido diferente do que acabou por acontecer. Um boom de litígios jurisdicionais! E nem se diga, porque há alguns que há anos defendem, ao estilo bitaite, que os juízes que temos são suficientes face à comparação com o que se passa noutros países europeus. Mas não se diz que nesses outros países [França é um bom exemplo] o formalismo de uma sentença, pelo menos de certos litígios, não é comparável ao que a lei exige aos juízes portugueses. Em França é possível, numa manhã, o Juiz administrativo ditar oralmente a sua decisão em meia dúzia de processos, sem o rigor do relatório e da fundamentação da matéria de facto que se exige em Portugal! Tal fundamentação apenas passa a ser mais exigente em caso de recurso!

Por isso, o meu repto é que todos dispam as vestes dos seus interesses concretos, por um lado, e, por outro, que abandonem as suas opiniões ao estilo "bitaite", e discutamos abertamente tudo, de forma intelectualmente honesta!

Sabemos dos sucessivos avisos que o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais foi fazendo aos sucessivos Governos, mas o que encontrou até 2009 foi um muro intransponível, autista, que foi abrindo apenas procedimentos concursais de recrutamento de magistrados para a jurisdição comum, durante muitos anos na ordem dos 100/ano (para a jurisdição comum e para o Ministério Público).
Resultado: os litígios interpostos nos Tribunais Administrativos e Fiscais foram-se acumulando, naturalmente, sem qualquer capacidade de resposta dos seus magistrados, por mais que trabalhassem e, muitas vezes, em prejuízo da qualidade das suas decisões, admito. Foram-se acumulando pendências atrás de pendências. Apenas nos anos de 2009, 2010, 2014 e 2016, e este ano 2018, os Governos acordaram para a solução, ainda que de modo tímido. Foram recrutados em 2008, 23 magistrados, em 2010, 43 magistrados, em 2014, 30 magistrados, e, em 2016, mais 40 magistrados (estes últimos ainda não tomaram posse como magistrados e os juízes recrutados em 2014 apenas em setembro de 2017 tomaram posse nos vários Tribunais Administrativos e Fiscais do país, considerando que o período de formação de um juiz é de 3 anos), num total em 136 juízes em 10 anos!
Justiça seja feita ao atual Governo que, em 3 anos de mandato, já ordenou a abertura de 2 cursos de recrutamento de magistrados para a Jurisdição Administrativa e Fiscal, em 2016 e este ano de 2018!
Todavia, apesar destes últimos recrutamentos, tudo permanece com semelhantes constrangimentos na 1.ª instância, pela razão simples de que eles serviram apenas para fazer face às jubilações, por um lado, e, por outro, para tapar os buracos deixados com as promoções dos juízes mais antigos a desembargadores, também para fazer face às pendências que, obviamente,  se foram acumulando nos Tribunais Centrais (2.ª instância), onde a pendência média por juiz desembargador quase triplica o que as instituições internacionais recomendam ser aceitável para um Tribunal de recurso, em ordem a permitir aos seus magistrados ter mais tempo para estudar o direito, pois que, em muitos casos, tratar-se-á da última decisão jurisdicional admissível. Relembramos que, sempre que se aumenta o número de juízes, logo a produção, na 1.ª instância, a curtíssimo prazo tal situação impacto na 2.ª instância.
Questiona-se, assim, o que tem falhado para encontrarmos os níveis de eficiência desejados? Parece-me fácil a resposta: as condições humanas e materiais que nunca foram dadas pelos decisores políticos para que ela fosse eficaz. E esta é, também, uma das conclusões do Observatório Permanente da Justiça.
Saberão os portugueses o que se exige, hoje, a um juiz administrativo para poder ter uma avaliação de mérito? Que faça 1 sentença em cada 2,5 dias, além de julgamentos, expediente, Despachos Saneadores, Audiências Prévias. E no caso dos juízes tributários, saberão que se exige que façam, em média, 1 sentença em cada 1.5 dias?
Por outro lado, a proposta feita no PACTO DA JUSTIÇA, simbolicamente em primeiro lugar, revela outras ignorâncias preocupantes. A compreensão do sistema de justiça administrativa ficará, sempre, incompleta, se não se compreenderem as razões determinantes para o seu concreto desenho institucional e que fundam a sua independência face à jurisdição comum.
Em países que partilham um sistema de Administração Executiva, altamente interventiva na vida dos cidadãos e com forte presença reguladora na sociedade, têm uma jurisdição administrativa e fiscal autonomizada da jurisdição comum.
Em França, o seu modelo judicial assenta em duas ordens jurisdicionais distintas: a jurisdição comum e a administrativa. As duas são constituídas por uma hierarquia de tribunais e cada uma delas tem um Supremo - no caso da jurisdição comum é o Tribunal de Cassação e no da administrativa é o Conselho de Estado.
Na Suécia, o sistema judicial está dividido em duas jurisdições: a comum e a administrativa, que têm uma organização paralela, com três graus de jurisdição. Existem, também, tribunais especializados para o julgamento de determinados litígios de natureza cível: os tribunais especializados da jurisdição comum são o Tribunal de Trabalho e o Tribunal do Comércio. Para as áreas do arrendamento, consumo e imigração, existem comissões presididas por juízes que podem ser consideradas corpos independentes, mas com funções jurisdicionais.
Na Alemanha a sua estrutura judiciária divide-se em jurisdição ordinária, jurisdições especializadas e jurisdição constitucional. A jurisdição ordinária engloba a jurisdição civil e a jurisdição criminal. Existem, depois, outras ordens jurisdicionais especializadas: a do Trabalho, a Social, a Administrativa e a Fiscal. No fundo, na Alemanha existem 4 ordens jurisdicionais.
Em Portugal, a discussão sobre a dualidade de jurisdições foi mais feroz aquando da implantação das reformas de Mouzinho da Silveira, pela Lei de 29 de outubro de 1840 que atribuiu o contencioso administrativo aos Tribunais Administrativos, criando-se em 1845 o órgão superior do contencioso administrativo, pela instituição de uma secção contencioso no Conselho de Estado da Carta Constitucional, secção que mais tarde veio a dar lugar ao Supremo Tribunal Administrativo, em 1870. Depois de novas hesitações ocorridas a partir de 1924, em 1930 estabilizou-se a dualidade de jurisdições para não mais ser colocada em causa por intervenção do legislador. Isto sem prejuízo de, logo após o 25 de abril, se ter verificado uma corrente forte desfavorável à manutenção da dualidade das jurisdições, que foi resolvida definitivamente na revisão constitucional de 1989.
E qual o seu fundamento?
Na verdade, o juiz dos litígios entre a Administração e os particulares não pode deixar de ser alguém que compreenda especialmente bem as relações jurídico administrativas ou jurídico tributárias e tal entendimento e domínio não se adquirem sem uma vasta experiência e especialização, que demora anos a firmar.
Hoje em dia o juiz administrativo português é um terceiro à relação jurídico administrativa/tributária, como o seria o juiz da jurisdição comum, estabelecida entre o Estado e os cidadãos particulares, ao contrário de outros sistemas judiciários, goza, pois, hoje, de plena jurisdição, simplesmente tratando-se de um juiz especial, vocacionado para o julgamento dos litígios jurídico administrativos/tributários, sujeito aos princípios de direito público. É que o direito administrativo e fiscal é dominado pela ideia de serviço e interesse público, muito diversa diria e estruturalmente diferente dos princípios de direito comum, no âmbito do direito privado, onde o interesse público não entra em qualquer equação. E o cenário não parece vir a minimizar esta forte presença do direito administrativo e tributário da vida dos cidadãos: a presença forte do Estado como ator principal, regulando a atividade económica, a área social e a vida dos cidadãos nas suas várias dimensões, é uma realidade cuja tendência não é de recuo.
A esta complexidade se acrescenta o peso e relevância do direito administrativo europeu, multipolar e com primazia sobre o direito nacional, em que cada vez mais matérias são altamente reguladas por Diretivas europeias [ambiental, atividade económica, contratos públicos, energia, segurança, matéria tributária como o IVA, entre tantos outros assuntos], que afasta muito o paradigma e as bases do direito administrativo e tributário do direito privado.
Recordamos que a Administração, que passou a conviver com outras formas jurídicas de exercício da atividade administrativa – Administração contratualizada e participada –, não deixou de ser altamente regulada: o procedimento administrativo, que ordena os passos necessários à tomada de decisão que a Administração Pública tem de respeitar, não se confunde ou, sequer, assemelha com as poucas regras que regulam as relações paritárias entre sujeitos privados.
O que bem se compreende. Na verdade, se se separar a prossecução do interesse público, pela Administração, das normas que lhe são co-naturais e se se a remeter para o domínio das meras relações da vontade, da autonomia e do arbítrio, em suma, para o direito civil, são os particulares os primeiros prejudicados, que não encontrarão uma tutela adequada e efetiva perante essa Administração, livre, agora, dos espartilhos que constrangem a atividade a quem é suposto cuidar da res publica. E isto mesmo foi reafirmado na revisão constitucional de 1989.
E o que dizer do direito tributário, onde cada vez mais os cidadãos são inundados de novos imposto [impostos diretos e impostos indiretos, impostos periódicos e impostos de obrigação única, impostos pessoais e impostos reais, impostos de quota fixa e impostos de quota variável, impostos sobre o rendimento, impostos sobre o consumo, impostos sobre o património], taxas, contribuições especiais, tarifas, preços e outras receitas parafiscais, de natureza altamente complexa que exige uma especialização de anos?
Nos dias exigentes de hoje, temos escritórios de advogados altamente especializados em vários ramos do direito e onde o direito administrativo e fiscal aparece concretamente autonomizado e especializado.
Também não será por acaso que nos recrutamentos dos juízes para a jurisdição administrativa e fiscal 75% dos magistrados selecionados são-no pela via profissional. Porquê? Porque são os que têm já carreiras especializadas firmadas, quer em faculdades, em escritórios de advogados especializados ou na própria Administração, ao contrário dos magistrados preferencialmente recrutados para a jurisdição comum em que 75% dos recrutados são-no diretamente das faculdades, após Mestrado, ou com poucos anos de experiência.
E que pretendem? Está o Estado disposto a pagar o preço de, no imediato, colocar juízes a julgar, tendencialmente generalistas e sem conhecimentos especializados no direito e contencioso administrativo e fiscal, sem qualquer expertise para decidir litígios onde, ao contrário, os respetivos mandatários estão amplamente preparados nessas temáticas?
Ou a unificação tem na sua génese a ideia de que os atuais juízes especializados serão os únicos a decidir estas matérias? Mas se assim é para que servirá a unificação?
E futuramente? Como se fará o recrutamento de juízes para estes tais eventuais Tribunais Administrativos e Fiscais, dentro da mesma jurisdição comum? Serão lugares aos quais os juízes das secções cíveis e criminais acederão, após 10 ou 15 anos de experiência a dirimir litígios civis e criminais, como hoje sucede nos Tribunais especializados de Família e Menores, de Trabalho, de Comércio, entre outros? Se sim, não deixarão de ser juízes especializados apenas em civil e penal, isto é, em direito privado, por um lado, e, por outro, até lá, contar-se-ão apenas com os atuais juízes da atual jurisdição administrativa e fiscal? Mas se assim é, qual a mais-valia da unificação?
Como se resolverão a curto prazo as tais pendências que motivaram o PACTO DA JUSTIÇA?
As limitações da jurisdição administrativa e fiscal serão solucionadas apenas com mais recursos humanos, com a criação de corpos de assessores e mantendo o seu recrutamento especializado, exigindo, na sua base, que os candidatos a juízes sejam já dotados de conhecimentos especializados nas matérias administrativas e fiscais, face à cada vez mais crescente complexidade que encerram. E uma tal especialização não pode ser tratada como uma qualquer especialização já hoje existente na jurisdição comum: tribunais de trabalho, tribunais de comércio, tribunais de família e menores, entre outros, a cujas vagas se acede depois de muitos anos a julgar matéria cível e penal, pois que, nestes casos, continuamos no domínio, sempre, do direito privado.
E foram estes argumentos que foram  expressos na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 93/VIII que viria a dar origem ao ETAF, onde o legislador considerou, precisamente, a ideia da especialização da justiça administrativa como ratio essendi da jurisdição.
Portanto, e em síntese, os representantes daqueles operadores judiciários que assinaram o PACTO DA JUSTIÇA acham que os deficitários juízes da jurisdição comum, com experiências exclusivas no direito privado ou no direito penal, conseguem fazer aquilo que os mais que deficitários juízes especializados da jurisdição administrativa e fiscal não conseguem e, pelos vistos, acreditando que com igual domínio das matérias que permitirão decisões justas e de qualidade!

Útil para uma verdadeira e saudável discussão sobre o desenho institucional do sistema de justiça português, sem contar com "quintas" ou "quintais", levaria a questionar se não faria sentido que os Tribunais da Concorrência estivessem na alçada da jurisdição administrativa e fiscal e se o julgamento dos atos administrativos do Conselho Superior da Magistratura não deveria ser competência da jurisdição administrativa e fiscal?
E é por tudo isto que, quanto a mim, tudo não passou, mais uma vez, de um momento tão habitual neste nosso país que é discutir a espuma dos dias, surfando uma ideia sexy, sob as luzes efémeras de uma ribalta que, não tenho dúvidas, daqui a uns anos será recordada como a responsável por mais um momento negro no desenho político do sistema de justiça português.
Nesse dia, farei questão de recordar os seus rostos.
Lamento que os operadores judiciários tenham "arrumado" um assunto polémico e carecendo de muita discussão, num belo fim de semana em Troia, acabando a discutir a espuma dos dias.
Termino com uma frase do Padre António Vieira, in Sete Propriedades da Alma, "… A justiça que se sustenta com demasiadas bocas, empobrece a todos, e todos a trazem na boca…".

 Obs: Este artigo, resumido, será publicado no Jornal I.
 
Eliana de Almeida Pinto
Juiz de direito no
Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro