domingo, 4 de novembro de 2018

GREVE, ESTATUTO DOS MAGISTRADOS, GOVERNO, AR E PR.

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[atualizado com referências a quem, além de muitos outros, também escreveu sobre o direito à greve dos magistrados, ainda que noutro contexto, com outra finalidade, outro enquadramento e diferente propósito]


"... Deve-se proporcionar uma remuneração suficiente e sustentável para permitir que o Poder Judiciário desempenhe suas funções de acordo com padrões elevados. Tal remuneração, depois de aprovada pelo Poder Legislativo para o Poder Judiciário, deve ser protegida da alienação ou má utilização. O poder de fixar a remuneração dos magistrados não deve ser utilizada como meio de exercer um controle indevido sobre a magistratura, pelo que serão de evitar sistemas que coloquem o poder judicial a "pedir" a outros poderes remunerações justas...".


Diretrizes de Latimer House para o Commonwealth sobre Supremacia Parlamentar e Independência Judicial, adotadas em 19 de junho de 1998, Diretriz II.2


O artigo 270º da Constituição da República Portuguesa prevê expressamente várias restrições ao direito de associação sindical e de greve, nada referindo quanto aos juízes e não havendo qualquer outra norma que restrinja o direito à greve relativamente aos mesmos, sendo certo que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição.


[a mesma referência é feita na página 10 de um artigo de 28 páginas publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins]


Em suma, como refere LIBERAL FERNANDES [in Revista do Ministério Público, n.º 54, p. 85- 90, referindo-se, em conjunto, aos magistrados judiciais e do Ministério Público] a liberdade de os magistrados recorrerem à greve advém sobretudo da sua posição de dependência relativamente ao Governo quanto à evolução da sua carreira, como qualquer outro trabalhador, pelo que GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, in Constituição da república portuguesa anotada. Vol. II. pp.848, aponta a exclusão dos magistrados do âmbito de aplicação desta norma constitucional.

O
direito à greve tem dignidade constitucional, fazendo parte, aliás, dos direitos fundamentais dos trabalhadores previstos na Constituição da República Portuguesa. De resto, o direito à greve é reconhecido como um corolário do direito de associação sindical, previsto no artigo 23º, n.º 4 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção n.º 87 da Organização Internacional do Trabalho, relativa à liberdade sindical e à proteção do direito sindical, e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (no seu artigo 118.º), tendo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem considerado, consequentemente, que o “…direito de fazer greve, que permite a um sindicato fazer ouvir a sua voz, constitui um aspeto importante para os membros de um sindicato na proteção dos seus interesses…".


No plano internacional, ressalva-se que há igualmente essa proteção, com o fulcro de tutelar um direito de toda a coletividade. A título de exemplo, citam-se os seguintes instrumentos: a DUDH (artigo 10.º); a Convenção Americana de Direitos Humanos (artigo 8.º); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (artigo 14.º); a Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (artigo 6.º); a Carta Europeia sobre o Estatuto dos Juízes, de junho de 1998; e os princípios gerais sobre a independência dos juízes, proclamados pela Assembleia Geral da ONU em 1985.


BERNARDO LOBO XAVIER considera a "greve" a abstenção da prestação de trabalho, por um grupo de trabalhadores, como meio de realizar objetivos comuns.


[este autor é igualmente citado sobre a sua definição de "greve" na página 4 de um artigo de 28 páginas publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins]


Ora, o artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa prescreve, assim, que “...1. É garantido o direito à greve. 2. Compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito. 3. A lei define as condições de prestação, durante a greve, de serviços necessários à segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como de serviços mínimos indispensáveis para ocorrer à satisfação de necessidades sociais impreteríveis. 4. É proibido o lock-out...”.


[citação igualmente feita desta disposição constitucional, in página 4 de um artigo de 28 páginas publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins]


Em Portugal, a CRP, no artigo 57.º, n.º 3, autoriza o legislador ordinário a estabelecer as condições de prestação de dois tipos de serviços durante a greve: àqueles que visam à necessária segurança e manutenção de equipamentos e instalações, bem como a prestação de serviços mínimos essenciais à coletividade, com o fim de satisfazer às necessidades sociais impreteríveis.


A partir desta definição e regulação e olhando para os magistrados como titulares de órgãos de soberania, é útil colocar uma concreta questão, apesar de sabermos que ela causa alguma confusão na generalidade das pessoas e parte da doutrina portuguesa, sobre saber se um titular de órgão de soberania pode/deve fazer greve. Todavia, como referi, parte da doutrina responde à questão formulada negativamente, mas fá-lo partindo de visões politicamente orientadas sobre as próprias funções exercidas pelos magistrados judiciais, enquanto titulares de órgãos de soberania.


É o caso, claro, de JORGE MIRANDA, que defende a ilegitimidade da existência de sindicatos que representem os juízes e também do próprio direito à greve sublinhando o facto de os juízes serem titulares de órgãos de soberania. Este autor, para fundamentar essas conclusões e para os equiparar, sem mais, aos restantes órgãos de soberania, defende que o estatuto dos juízes e dos demais titulares de órgãos de soberania, incluindo os aspetos remuneratórios e logísticos, entra na reserva absoluta da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea m)], pelo que o Presidente da República e os ministros se encontram exatamente na mesma posição dos juízes.

[o mesmo é referido na página 6 de um artigo de 28 páginas, publicado na revista julgar, junho 2017, por José Joaquim Oliveira Martins, bem como em inúmeros artigos publicados por Jorge Miranda, incluindo alguns artigos de opinião publicados em jornais diários e semanários nacionais, como é exemplo o publicado no "Observador", em 09/06/2017]


Sem revelar se, concretamente, após a decisão tomada em Assembleia Geral pela ASJP, decidirei fazer greve ou não, adianto discordar frontal e abertamente desta posição literal e cheia de pré conceitos de JORGE MIRANDA.
É que a Constituição estabeleceu, no artigo 270.º, a possibilidade de restrição do direito de greve a certas categorias de pessoas, não estando ali contemplados os magistrados judiciais. Dessa forma, não se poderia falar que o direito de greve é vedado aos magistrados, pois não há na Constituição qualquer autorização expressa nesse sentido.

Agora, poder-se-á dizer que as restrições e vedações aqui contempladas atingem tão somente algumas categorias de pessoas. Por isso, as categorias de cidadãos que não vejam os seus direitos satisfeitos plenamente são os militares, agentes militarizados, agentes de serviço e das forças de segurança. E não são todos os direitos que poderão ser limitados, mas somente os direitos de expressão, reunião, manifestação, petição coletiva, ser eleito para cargos políticos e associação – este último, vale assinalar, albergaria, inclusive, a restrição de participação em partidos políticos (artigo 51.º), a deslocação e a emigração (artigo 44.º), 138 a formação de comissão de trabalhadores (artigo 54.º), a liberdade sindical (artigo 55.º) e o direito à greve (artigo 57.º).

Em síntese, qualquer limitação ao seu direito constituiria uma afronta aos princípios do artigo 18.º, n.º 2 da CRP. Ressalta-se ainda, que não existe qualquer previsão legal a nível infraconstitucional que discipline a esse respeito, sendo certo que, caso advenha no ordenamento jurídico tal disciplina, esta será inconstitucional, por não encontrar respaldo nos limites impostos pela Constituição. Nessa vertente, constata-se a aplicabilidade imediata do direito de greve, em conformidade com aquele artigo 18.º, n.º 1, que estabelece que os direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis. É que há a aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantias, podendo ser invocados até mesmo mediante a ausência de lei - Vide GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da república portuguesa anotada. Vol. I. pp.382.

Aliás, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA defendem, por isso, a exclusão imediata dos magistrados do âmbito de aplicação deste artigo 270.º da CRP por não existir entre o Estado e os magistrados uma relação de trabalho típica,  in Constituição da república portuguesa anotada. Vol. I. pp.382.

Os juízes, afinal, são titulares de órgãos de soberania, sim. Mas têm, simultaneamente, uma carreira profissional que os obriga a uma total exclusividade, por um lado, a uma reserva profissional e, até, pessoal, que os limita em muitos direitos cívicos e de personalidade fundamentais, como participar mais ativamente na vida da polis, entre outras, pelo que o seu estatuto constitucional e profissional tem uma natureza híbrida ou dual que os faz circular entre a condição de trabalhadores e serem titulares de um órgão de soberania.

Claro que se trata de uma condição de trabalhador sui generis, pois que não existe a subordinação jurídica que se revela na sujeição do trabalhador, durante a prestação laboral, ao poder de direção e autoridade do empregador no âmbito organizacional laboral, mas nem por isso deixa de se tratar um magistrado como trabalhador.
Aliás, peço que me acompanhem: é ou não verdade que existe um particular e relevante ponto em que os juízes estão muito próximos dos trabalhadores propriamente ditos e que se prende com a “sua dependência económica" (um critério que tem sido cada vez mais considerado para a qualificação de uma relação como laboral), exercendo as suas funções em exclusividade, dependendo, em absoluto, da sua retribuição para poderem “viver”, como qualquer trabalhador?
E a quem compete fixar a sua remuneração? A outros órgãos de soberania, cujos atos, aliás, são julgados pelos Tribunais, numa relação esquizofrénica que, de certo modo, é contrária à ideia de separação de poderes e total independência entre eles.

É certo que o princípio da independência judicial é a independência de cada juiz singular, no exercício das funções adjudicante. De facto, no processo de decisão dos juízes deve ser independente e imparcial, capaz de agir sem qualquer restrição, influência indevida, pressão, ameaça ou interferência, direta ou indireta, de qualquer autoridade, incluindo as autoridades internas à magistratura. A hierarquia da organização judiciária não pode, pois, comprometer essa independência individual dos juízes. Todavia, a remuneração é uma peça-chave em qualquer atividade profissional para assegurar essa independência, sendo-o, por maioria de razão, na magistratura.

Mas esta aproximação dos juízes aos trabalhadores relativamente ao seu concreto estatuto sócio-profissional leva a que se possam associar sindicalmente e exercer o direito à greve, sem o que não teriam qualquer outra forma de reivindicar direitos relativos à sua carreira profissional, aliás como qualquer outro português que desempenha essa atividade profissional com caráter regular e permanente até à idade de reforma.

Não revelarei se aderirei ou não à greve decretada de 21 dias pelas ASJP, e em que termos, já que outras motivações que não estritamente as acima referidas poderão ser decisivas na minha decisão, todavia, o que pretendo, aqui , sublinhar é contrariar a ideia de que os magistrados são titulares de órgãos de soberania iguais aos senhores deputados, ministros, secretários de Estado, ou Presidente da República. Estes, de facto, "estão" deputados, ministros ou Presidente da República.

Nós não "estamos" magistrados, nós "somos" magistrados!

Ser deputado ou membro do Governo não é nenhuma profissão, apesar de parte significativa do hemiciclo ser composta por deputados que ali passaram toda uma carreira contributiva e de parte dos nossos governantes acabarem por passar parte significativa da sua idade ativa a exercer tais cargos, ininterrupta ou alternadamente. Os magistrados não. Desempenham as suas funções no âmbito do desenvolvimento desta sua carreira, assumindo todas as suas limitações, para cujo ingresso se impõem provas exigentes e para cujas promoções aos Tribunais Superiores igualmente se impõem condições muito exigentes [além das avaliações ao seu desempenho por inspeções regulares, também grau académico superior licenciatura, obras publicadas, artigos científicos publicados, aulas ministradas em estabelecimentos de ensino superior pro bono, conferências dadas...], sabendo que apenas uma pequeníssima parte conseguirá chegar lá!

Qualquer pessoa de bom senso, interessada em defender o Estado de Direito, informada [e que quer ser informada] e esclarecida é capaz de perceber isto.
 
 

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