domingo, 14 de janeiro de 2018

PORQUE RAZÃO EXISTEM DUAS JURISDIÇÕES NA ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA: A JURISDIÇÃO COMUM E A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL


UMA JUSTIÇA ADMINISTRATIVA E FISCAL MAIS EFICIENTE?

SÓ DEPENDE DE O ESTADO RECRUTAR MAIS MEIOS HUMANOS E PROPORCIONAR MAIS CONDIÇÕES MATERIAIS.  A BOLA ESTÁ, COMO SEMPRE ESTEVE, NO LADO DO PODER LEGISLATIVO E EXECUTIVO.

 
Certos juristas alemães do século XIX vislumbravam na existência de uma jurisdição administrativa e na correlativa subtração dos litígios jurídico-administrativos aos tribunais ordinários a natural projeção institucional de uma radical dissemelhança entre a atividade de dizer o direito quando estão em causa controvérsias jurídico-públicas e a atividade de dizer o direito nas restantes controvérsias jurídicas: como a justiça administrativa não podia deixar de ser uma justiça objetiva e justiça ordinária, pelo contrário, se apresentava como sendo uma justiça de direito subjetivo.

Todavia, nos dias de hoje, este fundamento perdeu sentido e a razão de ser da natural separação de jurisdições tem de ser vista à luz de outro tipo de argumentos.

Na revisão constitucional de 1989, momento em que se discutiu a unificação das jurisdições, numa discussão de elevado nível tida por ilustres constitucionalistas e jurisconsultos que, à época, faziam parte do órgão de soberania "Assembleia da República" foi dito que a relevância fundamental da separação das jurisdições se prendia com qualidade e eficácia nas decisões, já que, em abstrato, se entendia que o julgamento das questões que envolverem relações jurídico-administrativas implicavam um conhecimento profundo e multipolar do direito administrativo e do funcionamento de toda a Administração Pública e de outras formas de organização que o Estado vai criando para satisfazer as necessidades coletivas.

E o que dizer do direito tributário, onde cada vez mais os cidadãos são inundados de novos imposto [impostos diretos e impostos indiretos, impostos periódicos e impostos de obrigação única, impostos pessoais e impostos reais, impostos de quota fixa e impostos de quota variável, impostos sobre o rendimento, impostos sobre o consumo, impostos sobre o património], taxas, contribuições especiais, tarifas, preços e outras receitas parafiscais, muitas vezes atribuindo-lhes, muitas vezes, o poder legislativo nomem errado, sendo necessário os Tribunais descortinarem verdadeiramente o que ali está em causa, na ponderação da legalidade formal do tributo.

Não será, estou certa, por obra do acaso que o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal, quando têm em mãos crimes de fraude fiscal se suportam imediatamente em inspetores tributários!
E o que dizer da compreensão integral da relação jurídica tributária e substituição tributária nos vários tipos de tributos. Parece simples.


Talvez por isso os Tribunais judiciais, referiu Afonso Rodrigues Queiroz [in Lições de Direito Administrativo, VOL. I, Coimbra], especializados no cível e penal, não possuam naturalmente tal aptidão [que demora décadas a dominar] e muito menos depois de formatarem os seus juízos valorativos a estes ramos do direito, estando mal preparados para o exercício de uma função "pretoriana".

 
Uma tal especialização não pode ser tratada como uma qualquer especialização já hoje existente na jurisdição comum: tribunais de trabalho, tribunais de comércio ou tribunais de família e menores, a cujas vagas se acede depois de muitos anos a julgar matéria cível e penal!

A justiça administrativa e tributária está cada vez mais complexa e exige cada vez mais conhecimentos das novas formas de organização administrativas e das cada vez mais complexas regras de direito administrativo e de direito tributário, muitas tendo de ser conformadas com normas do direito europeu, que imputam à jurisdição administrativa e fiscal uma especialização "especial".

Não tenhamos ilusões. O conhecimento profundo dos princípios do direito administrativo e do direito tributário, muitos tão distantes do direito civil, bem como o conhecimento das realidades fácticas a que a estas se aplicam são requisitos decisivos para a boa realização da justiça administrativa e tributária e para a qualidade das decisões.

Aproveito para recordar Domingo Fézas Vital que afirmou que os princípios do direito público, e a compreensão do serviço público, tão distintos dos princípios de direito comum, do direito privado onde o interesse público não aparece citado por nenhum diploma legal como critério de ponderação, tornam estas duas áreas do direito altamente especializadas.

E estas foram as ideias que venceram o debate da revisão constitucional de 1989.

E bem.

O que tem falhado para encontrarmos os níveis de eficiência desejados?

As condições humanas e materiais que nunca foram dadas pelos decisores políticos para que ela também fosse eficaz.

Aliás, quem tiver interesse real em analisar o resultado do estudo sobre a eficiência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, elaborado pelo Observatório Permanente da Justiça, " O caso dos Tribunais Administrativos e Fiscais?", confrontar-se-á com uma carga atualmente existente sobre os seus magistrados totalmente diferente da que existe na generalidade da jurisdição comum.

Os magistrados da jurisdição administrativa e fiscal correspondem, hoje, a apenas 65% das necessidades mínimas para fazer face às pendências herdadas desde a reforma de 2004, mal planeada e feita sem o correspondente suporte de meios humanos.

De facto, a jurisdição administrativa e fiscal tem, à data de hoje, na primeira instância, menos de 200 juízes para fazer face aos litígios administrativos e tributários, de Norte a Sul do país, passando pelas Ilhas, sendo que em cada ano que passa mais competências são passadas para a jurisdição julgar e mais alterações contenciosas são feitas para assegurar a plena jurisdição, isto é, mais a porta se abre para que o cidadão, justamente, possa pôr em causa decisões que contra si são tomadas, quer por uma Administração central e local agressiva, quer de uma Autoridade Tributária e Aduaneira super agressiva.


Vários ilustres jurisconsultos têm ao longo dos anos explicado a razão da manutenção da separação das jurisdições.

As razões prendem-se com a coerência do sistema. Enquanto o Estado português tiver um pendor vincado e interveniente na vida dos cidadãos, e nos dias que correm a tendência é acentuar tal intromissão, por parte das instituições públicas, quer meramente administrativas, quer fiscais, a separação das jurisdições não pode deixar de se manter. Dizem-no, Bernardo de Ayala, Freitas do Amaral, Sérvulo Correia e Vieira de Andrade.

E tais argumentos se encontram bem expressos na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 93/VIII que viria a dar origem ao ETAF, onde o legislador considerou a ideia da especialização da justiça administrativa como ratio essendi da jurisdição.

Dito isto, manifestamente não compreendi a razão da proposta de elaboração de um estudo para a unificação das duas jurisdições, numa das 88 medidas, curiosa e simbolicamente logo a primeira delas, que a maioria dos operadores judiciários terão encontrado de modo consensualizado, como se os "atrasos" nas decisões da jurisdição administrativa e fiscal não estivessem mais que identificados e possam ser resolvidos com uma tal unificação!

Portanto, os representantes daqueles operadores judiciários acham que os deficitários juízes da jurisdição comum conseguem fazer aquilo que os mais que deficitários juízes especializados da jurisdição administrativa e fiscal não conseguem? [nem eles e nem ninguém!].

Não posso deixar de concluir que, em concreto, os representantes da Associação Sindical de Juízes Portugueses assumiram tal posição por acreditarem que da unificação poderão advir vantagens para a eficiência dos tribunais administrativos e fiscais, apenas propondo a elaboração de um estudo para o confirmarem ou não, revelando ignorar totalmente o estudo feito pelo referido Observatório Permanente para a Justiça que academicamente e depois de uma análise ao interior destes tribunais apresentou os constrangimentos, estrangulamentos e vias de resolução numa sessão pública.
Curioso que a unificação das jurisdições não foi sequer apontada como via a estudar!

Lamento, como juiz, ter sido surpreendida com tal proposta de medida [estudo para a unificação] sem ter havido o cuidado de investigar um pouco mais estas diferentes realidades, tendo ficado bem presente a vontade de apresentar rapidamente medidas, 99% das quais para a jurisdição comum, o que demonstra bem o tempo "perdido" com a apreciação dos problemas dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a apresentação de propostas de resolução.
Registo também que nem para a elaboração de um estudo houve consenso quanto ao crime de enriquecimento ilícito e delação premiada!
 
 
Eliana de Almeida Pinto
Juiz

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