quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

OS PROBLEMAS DA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL QUE OS CIDADÃOS NÃO VÊEM!

 
 
Falar de justiça está na moda. É positivo. Realidade que não suscita opiniões e controvérsia é realidade que não toca os cidadãos e, por isso, não existe. Todavia, a justiça e o sistema de justiça de um país constituem alguns dos mais relevantes pilares de uma sociedade democrática, justa, igualitária e livre, razão pela qual falar de justiça é muito positivo, mas mais importante ainda é falarmos dela com conhecimento da sua realidade concreta, sem receio de apontarmos o dedo seja a quem for e seja ao que for. Só assim as opiniões sobre ela e os caminhos que muitos gostam de lhe apontar poderão fazer caminho com realismo.
 
De resto, falar de sopro e ao sabor do vento que passa não contribuirá, estou certa, para resolver qualquer dos seus mais concretos problemas e dificuldades.
A jurisdição administrativa tem, em Portugal, como na generalidade dos países europeus, uma longa tradição, tendo o seu nascimento ocorrido algures no início do século XIX, mas, apesar disso, o legislador português nunca lhe prestou a mesma atenção que prestou à jurisdição comum [dos tribunais comuns], não obstante lhe atribuir cada vez mais competências, desde que os litígios resultem de relações administrativas e fiscais.

Aos olhos dos cidadãos o que aparece? Aos olhos do cidadãos comum, o que a sua vista alcança são efetivamente processos a aguardar decisões de 1.ª instância há 4, 5 e mais anos; processos em recurso a aguardar decisão de recurso há 4, 5, 6 e mais anos. Pelo que é absolutamente natural que para estes cidadãos [que são a larga maioria] a conclusão óbvia a tirar é a de que a justiça em geral não funciona, e a jurisdição administrativa e fiscal em concreto ainda funciona pior. É perfeitamente natural que este seja o raciocínio de qualquer utilizador do sistema de justiça em Portugal.
 
Convido-vos, porém, a virem comigo fazer uma pequena viagem ao mundo da jurisdição administrativa e fiscal. Talvez no final possam ter uma opinião diferente.
 
Com a reforma do contencioso administrativo de 2004, Portugal deu um grande passo rumo à ampliação do exercício dos seus direitos relativamente a atuações dos órgãos do Estado e à tutela jurisdicional efetiva inexistente à época da antiga LPTA [Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (DL n.º 267/85, de 16 de Julho)], mas com essa grande reforma legislativa não se pensou em dotar os Tribunais de meios humanos e materiais necessários para a acompanhar. Esta revolução, aliás, trouxe um evidente incremento do recurso à jurisdição administrativa e fiscal por parte dos cidadãos, sem, todavia, deste lado, a máquina judicial estar preparada para tanta utilização.
Digamos que são reformas feitas "à moda de Portugal", ou seja, tudo apenas no papel, depois de discussão parlamentar!
 
Para que todos possam ter a verdadeira dimensão do problema, desde 2004 até hoje, 2016, em 11 anos, foram recrutados, em média, cerca de 100 magistrados para a jurisdição comum anualmente [o que totaliza um recrutamento de cerca de 1100 magistrados que foram fazendo face às jubilações e reformas anuais], mas do lado da jurisdição administrativa e fiscal foram recrutados em 2004, 90 magistrados, depois apenas em 2008 foram recrutados mais 25, em 2009 outros 25, em 2010, 45, e em 2014 outros 45, sendo que estes últimos se encontram, ainda, em fase de formação, ou seja, não estão, ainda, a produzir nos Tribunais [num total de 230, dos quais 45 estão, ainda, em fase de formação], sendo certo que, também aqui, se foram jubilando e reformando magistrados ao mesmo tempo que cada vez mais a jurisdição administrativa e fiscal recebe competências para dirimir litígios, por um lado, e, por outro, cada vez mais os cidadãos e as empresas reagem contra o Estado, recorrendo, naturalmente, aos Tribunais.
 
Acresce relembrar que o antigo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro] previu nos seus artigos 56.º e 56.º-A a possibilidade de existir um Gabinete de Apoio aos Tribunais Administrativos de Circulo e Tribunais Tributários, contudo a criação deste gabinete de apoio em cada tribunal da jurisdição administrativa e fiscal seria efetuada por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da justiça e, como é natural neste país, quando se pretende fingir que se resolveu um problema, mas no fundo não se quer verdadeiramente resolve-lo, remete-se tudo para posterior Portaria!
 
Resultado: desde 2004 nunca saiu a referida Portaria.
 
O novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [aprovado pelo Decreto-Lei 214-G/2015, de 2 de outubro] também prevê, no n.º 4 do seu artigo 56.º, que "... Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal dispõem de assessores que coadjuvam os magistrados judiciais...", determinando-se, também, no seu artigo 56.º A que "... A criação do gabinete de apoio em cada tribunal da jurisdição administrativa e fiscal é efetuada por portaria conjunta dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da Administração Pública e da justiça, que fixa igualmente o número de especialistas com formação científica e experiência profissional adequada que constitui o gabinete...", sendo o seu recrutamento feito pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais em Comissão de Serviço.
 
Ou seja: mais do mesmo, estimando que tudo se mantenha como antes!
 
Sem juízes, sem funcionários judiciais e sem assessores não há, nem pode haver, milagres!
Contudo, como sou uma pessoa de esperança, quero acreditar que finalmente se vai olhar para a realidade concreta e procurar resolver as dificuldades e constrangimentos humanos e materiais existentes [a resolução de muitos deles pode até nem ter custos financeiros, se se apelar à criatividade, bastando, a título de exemplo, que se lance um procedimento concursal comum para recrutar juristas, economistas e contabilistas já com vinculo laboral público, em regime de comissão de serviço, por exemplo em períodos de 5 anos, limitadas a "x" renovações, sendo motivação bastante criar, por exemplo, um regime especial de acesso ao CEJ para estes assessores juristas] e deixar a proliferação legislativa, tão própria de quem sabe que, a seguir, não vai ter de FAZER !