segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

SER JUIZ HOJE!


Frequentemente se diz que um Juiz quer-se inteligente, experiente ao nível das suas vivências, tecnicamente bem preparado. Perspicaz na apreciação da prova. Expedito e decidido. Eficiente, numa palavra.
Impõe-se contudo realçar, eu diria até relembrar o óbvio, que um juiz não é um político, não tendo uma qualquer agenda política a cumprir, ou a impor. Também não é um diplomata, no sentido de procurar a aprovação de todos. Ou, sequer, na perspetiva de agradar a alguém. Em rigor, não tem nem o deve fazer, fora do quadro dos poderes de mediação e conciliação que a lei lhe faculta ou exige. A sua função é apenas julgar e decidir.
 
Uma sentença judicial destina-se a dirimir conflitos entre pessoas (particulares e/ou coletivas) não podendo, em consequência, satisfazer a todos. Tem de absolver-se ou condenar-se alguém, para desagrado de uma das partes.
Se quiséssemos definir, com dois ou três conceitos, a essência da postura pessoal e profissional de alguém que exerce a judicatura, teríamos de chamar, necessariamente, à colação três características pessoais e profissionais: honestidade, humildade e humanidade, ou seja, uma vida honrada e séria,  pautada por critérios de imparcialidade, e um cavado sentido de autocrítica para reconhecer os seus erros e deficiências que todos os profissionais cometem, sobretudo no início de carreira. Finalmente, uma entranhada sensibilidade pessoal e social relativamente a cada uma das situações que é chamado a decidir. Porque muitos dos casos judiciais são, também e acima de tudo, casos humanos. Com firme autoridade mas sem autismos. Nem espúrios autoritarismos.
 
Ora, com a mediatização do judiciário, espaço no qual a justiça nunca aprendeu a mover-se, esta realidade de termos sempre, em cada caso, uma das partes descontentes transportou para a arena noticiosa a versão parcelar e, naturalmente, crítica de quem ficou descontente.
Mas a justiça, pelas características que assume e, acrescento, deve preservar, nunca soube, e ainda não sabe, ali movimentar-se.
 
Em todo o caso, diria, sem perder o essencial da discussão, talvez fosse tempo de as instâncias judiciais, pelo menos nas situações relativas aos casos mais mediáticos, começar a refletir na necessidade de se adaptar a estes tempos mais exigentes, na medida em que não é despicienda a perceção dos cidadãos sobre a justiça do seu país no âmbito da confiança que nela devem ter, já que ela constitui, sem qualquer margem para interrogações, um dos mais relevantes pilares de uma Democracia forte e vigorosa.
Não vale a pena assobiar e fingir que a sociedade não mudou. Mudou. E muito. E o jogo das perceções é decisivo na confiança que depositam nas principais instituições democráticas de um país!
 
Naturalmente que o sentido de justiça, o bom senso e o espírito de equidade não podem estar ausentes das decisões judiciais. Bem como a compreensão dos dramas, somente pressentidos ou adivinhados. A tolerância para o erro alheio.
 
Uma curta mas sugestiva viagem no tempo faz-nos deparar, por exemplo, na jurisdição administrativa e fiscal com cerca de 130 juízes em 2004 e com cerca de 153 juízes na primeira instância em 2016 (entre efetivos e auxiliares). Em 2016, a segunda instância, entre juízes desembargadores efetivos e auxiliares contam-se no total com 42 juízes. E no Supremo Tribunal Administrativo contam-se com 22 Juízes Conselheiros (entre efetivos e auxiliares).
Isto numa jurisdição cada vez mais crescente, tanto nas secções administrativas como nas tributárias.
Aliás, considerando o posicionamento do Estado para com os cidadãos nos dias de hoje, é absolutamente natural que os litígios resultantes da atuação das várias "administrações públicas" (de natureza administrativa ou tributária)  - administração agressiva - causem cada vez mais reação por parte dos destinatários das suas decisões, que, de resto, estão, hoje, muito mais esclarecidos dos seus direitos, sejam cidadãos particulares, trabalhadores com vínculo laboral público ou pessoas coletivas de natureza comercial ou associativa.
Significa isto que os litígios emergentes das relações jurídico administrativas e fiscais tenderão a crescer ainda mais e a exigir mais, muito mais, à jurisdição administrativa e fiscal.

Não olhar para esta realidade é um erro. Importa olhar para ela com preocupação, mas, também, com vontade de contribuir para que ela supere essas mesmas dificuldades e obstáculos, colaborando, em parceria, com o poder executivo na sua resolução. Deixar passar a ideia de que a jurisdição administrativa e fiscal não é capaz de responder, num prazo razoável, às solicitações dos cidadãos é injusto e corresponde ao apagamento da verdade. E a verdade é que ao mesmo tempo que o Estado foi dando mais competências aos tribunais administrativos e fiscais (seja aos tribunais administrativas, seja aos tribunais tributários) sem lhes conferir os meios humanos e materiais essenciais para lhes dar resposta, foi-se deixando passar a ideia errada de que  problema só poderia ser da jurisdição. "Sound Bite" que tem tanto de errado como de injusto para com tantos juízes que aqui trabalham, e muito, e para com os funcionários judiciais que trabalham muito além das horas a que estão obrigados sem receber qualquer compensação financeira por isso. Sou disso testemunha.
 
Depois, as reformas dos códigos de processo, seja o processo civil, também aplicável, seja o processo administrativo (o processo tributário mantém-se, por ora, o mesmo) foram no sentido de abrir mais a porta para a plena tutela jurisdicional efetiva.
 
Por outro lado, a obrigatória gravação da prova, com a possibilidade da sua reapreciação pelos tribunais da 2.ª instância, a exigência de uma acrescida fundamentação acerca da apreciação daquela e os vulgarmente denominados “megaprocessos” e "processos dos milhões", que há 15, 20 anos seriam uma anomalia episódica do sistema mas que agora tendem a proliferar e a disseminar-se, absorvendo, como buracos negros, recursos materiais e humanos e muito espaço e tempo das vidas de todos os envolvidos, constituem, entre outros exemplos, novas realidades e desafios para os juízes, para os quais o poder executivo deve igualmente olhar, como responsável por assegurar um sistema de justiça adaptado aos novos tempos e capaz de lhes dar respostas eficazes.
 
Os juízes, porque aí têm a última palavra, que é decisória e definitiva, constituem o rosto mais visível deste mundo complexo, muito técnico e, para muitos, enigmático, que é o da justiça e dos tribunais. Mas nenhum juiz é uma ilha, cercada de cidadãos. Partilha antes, ombro a ombro com a comunidade onde se encontra inserido, o sentir e devir coletivos.
Um juiz é, na verdade, um cidadão entre os demais, com a específica função exigente de julgar, em nome de todos e para todos.
Ser juiz hoje é uma realidade muito distinta da, provável, ideia que povoou o imaginário coletivo durante anos e, julgo, ainda povoa.