sexta-feira, 20 de março de 2020

O TELETRABALHO EM SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA

Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março - medidas excecionais - pandemia do COVID-19...

Interpretar a lei é atribuir-lhe um significado, determinar o seu sentido a fim de se entender a sua correta aplicação a um caso concreto. Além do elemento literal, o intérprete tem de se socorrer algumas vezes dos elementos lógicos com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a sua lógica. No caso deste Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, no seu espírito, apreciado o seu preâmbulo, é evitar riscos de contágio, isolando em casa todos os que possam prestar o seu trabalho nesse ambiente, independentemente da natureza da entidade empregadora. O contágio pode não ocorrer no local de trabalho, mas no percurso até lá, pelo que impor a um trabalhador (seja qual for a natureza da entidade empregadora) deslocações desnecessárias e não fundamentadas, quando a prestação do serviço, no concreto, possa ser feita em casa, é, além de irresponsável, ilegal, atento os artigos 29.º e 10.º do diploma citado.

Recordo, ainda, que a saúde pública é um bem fundamental e constitucionalmente protegido. O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), relativo à saúde, consagra, na sua versão atual, a proteção da saúde como um dever, mas, sobretudo, como um direito de todos, realizado através de um serviço nacional de saúde (SNS) universal, geral.

Na verdade, terá de ser o empregador a fundamentar, no caso concreto, quais os trabalhadores, identificando-os, atenta a natureza da respetiva prestação laboral, tarefas ou funções, cuja presença física no local de trabalho é imprescindível: exemplos disso serão os trabalhadores responsáveis por processar remunerações, por desempenharem funções de vigilância e fiscalização, sobretudo destas medidas de exceção, pessoal de prestação de cuidados de saúde, pessoal das autoridades de segurança interna, entre outros do mesmo tipo.

Então, qual o âmbito de aplicação deste diploma legal?

É um diploma que, por razões de eficácia, é transversal: aplica-se ao setor público, ao setor privado, tem regras processuais para os tribunais, para os sujeitos processuais e regula proibições genéricas a cidadãos em geral. É o que diz ser: um diploma de emergência.
Depois prevê um regime excepcional, assim denominado porquanto tem impacto na despesa pública e que, por isso, se aplica exclusivamente à Administração Pública em sentido amplo, e que consta dos seus capítulos II e III, sendo referente à contratação pública e à gestão de recursos humanos com impactos financeiros e isso mesmo é explicado no respetivo preâmbulo, onde se pode ler que se torna "... necessário estabelecer um regime excecional em matéria de contratação pública e realização de despesa pública, bem como em matéria de recursos humanos, conciliando a celeridade procedimental exigida com a defesa dos interesses do Estado e a rigorosa transparência nos gastos públicos...".

Em todo o caso, o Capítulo IV é dirigido à Administração Pública Escolar, contendo uma proibição dirigida a estudantes, ou seja a cidadãos. Também o Capítulo V se dirige a cidadãos.
O Capítulo VI é destinado aos profissionais forenses.
O Capítulo VII volta a ser dirigido a cidadãos e o Capítulo VIII regula as medidas de proteção social na doença e na parentalidade, aplicável tanto a trabalhadores com vínculo de emprego público, como a trabalhadores do setor privado.

Já o Capítulo IX se destina-se aos trabalhadores independentes e o Capítulo X, regula, em geral, formas alternativas de trabalho no momento de exceção que se vive, sendo aplicável a qualquer trabalhador sujeito a prestação de horário de trabalho, ou seja, trabalhador por conta de outrem: quer do setor público, como no privado. Neste âmbito, o artigo 29.º permite que o empregador imponha, querendo, o teletrabalho a todos, mas não sendo o caso, permite, ainda, ao trabalhador requerer essa forma de prestação de trabalho, sem necessidade de acordo do empregador. E neste caso, para se indeferir um requerimento de teletrabalho é necessário que o empregador fundamente de modo especial, e no caso concreto, quais as tarefas específicas atribuídas ao trabalhador requerente que exigem a sua presença física no local de trabalho.

E o que é o teletrabalho?
Nos anos 70, no contexto da crise petrolífera e consequente necessidade de diminuir o consumo de combustíveis nas deslocações diárias e respetivos problemas de trânsito, começou a estudar-se a possibilidade de levar o trabalho ao trabalhador em vez do trabalhador ao trabalho. Este fenómeno, ainda hoje designado pelos norte-americanos como telecommuting para designar o teletrabalho, poupa a dupla viagem diária desde casa ao escritório e desde o escritório a casa.

Etimologicamente, o substantivo “teletrabalho” deriva da junção do advérbio grego “téle”, que significa “longe”, “ao longe”; e do verbo latino “tripaliare” que significa “trabalhar”. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1990, definiu teletrabalho como “...uma forma de trabalho em que a) o trabalho é realizado num lugar afastado da sede principal ou do centro de produção, separando-se assim o trabalhador do contacto pessoal com os trabalhadores; e b) e que implica uma nova tecnologia que permite a separação e facilita a comunicação...".

O paradigmático Acordo-Quadro Europeu sobre o Teletrabalho, assinado no dia 16 de julho de 2002 pelos principais parceiros sociais europeus, consagra uma definição genérica e ampla de teletrabalho, com o intuito de abranger várias modalidades desta forma de trabalhar subordinado. Estamos assim perante “...uma forma de organização e/ou execução do trabalho, através do recurso às tecnologias de informação, no contexto de uma relação laboral, em que a atividade contratada, embora possa ser executada nas instalações do empregador, é exercida fora destas instalações, de forma regular...”.

Pergunta-se: é sensato dizer, no atual contexto de exceção, que não há condições técnicas para a prestação de trabalho em teletrabalho?
Desde logo pergunta-se quais serão essas condições técnicas? Como já se percebeu, basta um computador pertencente à entidade empregadora ou, na sua ausência, a autorização e a aceitação do trabalhador em ceder um que lhe pertença, disponibilizando ao empregador o necessário serviço de internet, de modo a poder manter a comunicação com as respetivas chefias. Estas são as únicas condições técnicas a acautelar, no atual contexto de exceção em que todos nos encontramos. Sabe-se, obviamente, que em qualquer situação de emergência poderão sempre ser imediatamente chamados às instalações da entidade empregadora.

De resto, no caso das entidades empregadoras públicas, o teletrabalho devia estar regulado nos respetivos IRCT, pelo que não estando, ele apenas pode ser implementado com a autorização de todos os trabalhadores. No caso das carreiras na Administração Pública que sejam tituladas por nomeação, só mesmo com autorização de cada um dos trabalhadores, nos termos dos artigos 68.º e 69.º/1 da LGTFP e artigo 165.º a 171.º do CT, já que os instrumentos de regulamentação coletiva são apenas fonte de direito específica do contrato de trabalho em funções públicas.

Não estando num quadro de normalidade, o teletrabalho acabou regulado, neste período transitório e de excepção, permitindo a sua determinação unilateral pelo empregador ou a requerimento do trabalhador, sem necessidade de acordo do empregador, tendo este, ao contrário, se o quiser impedir, fundamentar especialmente a sua recusa no caso concreto, explicitando as concretas funções atribuídas ao trabalhador que imponham a sua presença no local de trabalho.

Em tempo excecional, medidas excecionais e bom senso excecional!

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