Breves Reflexões Soltas
Para o
desenvolvimento das actividades do Estado que são necessárias
à prossecução do interesse público, existirá uma livre escolha entre as
formas de organização jurídico-privadas e as formas de organização
jurídico-públicas? O mesmo é questionar se uma entidade pública pode livremente
optar, para desenvolver a sua missão, por entrar no capital social de uma
sociedade privada e/ou transformar-se numa pessoa colectiva de direito privado?
Apesar da
doutrina divergir, sobretudo porque parte dela entende que para integrar a
Administração Pública continua a exigir-se que as entidades detenham
personalidade jurídica pública, na verdade, outra parte da doutrina defende a
dispensa deste critério, admitindo que as entidades formalmente privadas possam
integrar a Administração Pública. Por
outro lado, uma terceira corrente defende que a Administração Pública inclui
também entidades privadas, desde que investidas de funções
público-administrativas. Pedro Gonçalves integra-se nos persecutores desta última corrente,
defendendo a reformulação do conceito orgânico ou institucional da
Administração Pública, pugnando pela substituição do critério formal (de
órgãos, serviços e agentes do Estado e demais pessoas colectivas públicas que
asseguram, em nome da colectividade, a satisfação regular das necessidades
colectivas) por um de natureza material que admita que entidades formalmente
privadas, criadas pela Administração ou que se encontrem sob sua influência
dominante devam integrar também a estruturada Administração Pública.
Nós
seguimos esta última posição, tanto mais que a Constituição da República
Portuguesa não proibe a livre escolha das formas de organização do Estado,
pertencendo à liberdade de organização das próprias entidades públicas fazer
essa opção, com a excepção dos casos em que a lei a isso se oponha
expressamente.
Na
sequência das nossas anteriores interrogações, perguntamos se haverá limites
constitucionais à possibilidade de privatizar organicamente a Administração
Pública?
Não se pode dizer que sempre
que o Estado adopta uma forma jurídica privada – “privatização orgânica” – está
a fugir para o direito privado, como bem sublinha Pedro Fernández
Sánchez, já que tais entidades, encontrando-se vinculadas
teleologicamente ao princípio da prossecução do interesse público, e não gerando qualquer diminuição dos direitos e
garantias dos particulares, estarão sempre sujeitas a uma publicitação que lhes
coloca a imposição de um denominado doutrinalmente “direito administrativo privado.
Tratar-se-á,
na verdade, de uma “administrativização” do direito privado. Desde
logo a Administraçao está sujeita ao princípio da prossecução do interesse
público, sendo ele fundamento da actividade da
Administração Pública, sabendo-se que esse interesse público é definido em cada
momento pela lei, mas que assiste, aqui, uma margem de discricionaridade à
Administração para o ir concretizando e interpretando, atendendo aos vários e
sucessivos contextos históricos. Digamos que a Administração recebe um poder
discricionário sempre que a lei determine de modo impreciso o interesse público
que fica a seu cargo. E isto porquê? Exactamente porque a noção de interesse
público tem necessariamente um conteúdo variável e tendencialmente evolutivo.
Porém,
uma vez determinado o interesse público, Rogério Soares fala de um “dever de
agir” por parte da Administração Pública, sob pena de ocorrer vício de desvio de poder. Por outro lado, ainda está
a Administração sujeita ao princípio da legalidade, ou subordinação à lei e ao
direito, traduzindo-se esta sujeição a uma subordinação à
juridicidade, devendo ler-se o n.º 2 do artigo 266.º da CRP com esta amplitude,
na linha do previsto pelo n.º 1 do artigo 3.º do CPA, assim como está ela sujeita ao princípio da
responsabilidade pessoal dos funcionários e agentes do Estado e demais
entidades públicas (Cfr. artigo 271.º da CRP), respondendo pelas suas acções e
omissões perante os cidadãos,
constituindo o garante de que a sua actuação é conforme o direito e o interesse
público.
Ora, a
actividade de gestão privada da Administração estará sujeita a este princípio
de juridicidade? É que a submissão ao princípio da reserva de lei foi concebido
para uma Administração autoritária, mas quando estamos perante uma
Administração prestadora onde em causa estão a concessão de prestações a
particulares fará o mesmo sentido? Freitas do Amaral acompanha a corrente alemã, perfilhada por Jesch, ao entender que a sujeição ao princípio da
legalidade cobre todas as manifestações da Administração Pública, seja a
agressiva, seja a de prestação, até porque mesmo na Administração de prestação
podem ocorrer violações aos direitos dos particulares e aos seus interesses
legítimos (Vg: recusa de prestações).
Em suma,
o princípio da legalidade, no sentido amplo da juridicidade, vincula e serve de
limite de toda a actividade administrativa, seja ela de direito público, seja
ela de direito privado, tal como bem resulta do artigo 2.º do CPA.
Mas, na
realidade, não é indiferente saber se a entidade
administrativa que prossegue o interesse público assume a forma pública ou se,
pelo contrário, tem natureza privada, assim como não é indiferente saber se ela
exerce a sua actividade mediante uma gestão pública ou privada, pois que,
segundo Pedro Fernández Sánches, in “Os Parâmetros de Controlo da Privatização
Administrativa", uma entidade pública assim dotada por iniciativa pública está obrigada
constitucional, legal e estatutariamente à prossecução exclusiva do interesse
público (Cfr. n.º 1 do artigo 266.º da CRP), pelo que qualquer actuação para
cumprir fins privados será inválida por desconformidade com os seus fins
constitucionais e estatutários, sendo este o seu limite constitucional.
Ao
inverso, a “privatização” de uma
entidade administrativa equivale à possibilidade de prossecussão também de interesses
privados e não apenas exclusivamente públicos. Por isso, sempre que ocorre a
transformação de uma pessoa colectiva pública por uma de natureza privada de
cariz societário a determinação dos interesses a prosseguir passam a competir
aos respectivos accionistas ou associados, podendo variar ao longo dos tempos.
Tal significa que, mesmo que os accionistas públicos detenham a maioria de
capital e, por isso garantam a prossecução do interesse público, o que é facto é que,
por um lado, tal realidade é meramente temporária e precária (mal sejam
vendidas as restantes participações sociais e a maioria do capital transite
para sócios privados a prossecução do interesse público deixa de ser um
interesse primordial a proteger) e, por outro, o interesse público
será desenvolvido simultaneamente com os interesses privados dos accionistas ou
associados.