quinta-feira, 3 de julho de 2014

A PRIVATIZAÇÃO DA "FUNÇÃO PÚBLICA". LIMITES CONSTITUCIONAIS.


Breves Reflexões Soltas

Para o desenvolvimento das actividades do Estado que são necessárias à prossecução do interesse público, existirá uma livre escolha entre as formas de organização jurídico-privadas e as formas de organização jurídico-públicas? O mesmo é questionar se uma entidade pública pode livremente optar, para desenvolver a sua missão, por entrar no capital social de uma sociedade privada e/ou transformar-se numa pessoa colectiva de direito privado?
Apesar da doutrina divergir, sobretudo porque parte dela entende que para integrar a Administração Pública continua a exigir-se que as entidades detenham personalidade jurídica pública, na verdade, outra parte da doutrina defende a dispensa deste critério, admitindo que as entidades formalmente privadas possam integrar a Administração Pública. Por outro lado, uma terceira corrente defende que a Administração Pública inclui também entidades privadas, desde que investidas de funções público-administrativas. Pedro Gonçalves integra-se nos persecutores desta última corrente, defendendo a reformulação do conceito orgânico ou institucional da Administração Pública, pugnando pela substituição do critério formal (de órgãos, serviços e agentes do Estado e demais pessoas colectivas públicas que asseguram, em nome da colectividade, a satisfação regular das necessidades colectivas) por um de natureza material que admita que entidades formalmente privadas, criadas pela Administração ou que se encontrem sob sua influência dominante devam integrar também a estruturada Administração Pública.
Nós seguimos esta última posição, tanto mais que a Constituição da República Portuguesa não proibe a livre escolha das formas de organização do Estado, pertencendo à liberdade de organização das próprias entidades públicas fazer essa opção, com a excepção dos casos em que a lei a isso se oponha expressamente.
Na sequência das nossas anteriores interrogações, perguntamos se haverá limites constitucionais à possibilidade de privatizar organicamente a Administração Pública?
Não se pode dizer que sempre que o Estado adopta uma forma jurídica privada – “privatização orgânica” – está a fugir para o direito privado, como bem sublinha Pedro Fernández Sánchez, já que tais entidades, encontrando-se vinculadas teleologicamente ao princípio da prossecução do interesse público, e não gerando qualquer diminuição dos direitos e garantias dos particulares, estarão sempre sujeitas a uma publicitação que lhes coloca a imposição de um denominado doutrinalmente “direito administrativo privado. 
Tratar-se-á, na verdade, de uma “administrativização” do direito privado. Desde logo a Administraçao está sujeita ao princípio da prossecução do interesse público, sendo ele fundamento da actividade da Administração Pública, sabendo-se que esse interesse público é definido em cada momento pela lei, mas que assiste, aqui, uma margem de discricionaridade à Administração para o ir concretizando e interpretando, atendendo aos vários e sucessivos contextos históricos. Digamos que a Administração recebe um poder discricionário sempre que a lei determine de modo impreciso o interesse público que fica a seu cargo. E isto porquê? Exactamente porque a noção de interesse público tem necessariamente um conteúdo variável e tendencialmente evolutivo.
Porém, uma vez determinado o interesse público, Rogério Soares fala de um “dever de agir” por parte da Administração Pública, sob pena de ocorrer vício de desvio de poder. Por outro lado, ainda está a Administração sujeita ao princípio da legalidade, ou subordinação à lei e ao direito, traduzindo-se esta sujeição a uma subordinação à juridicidade, devendo ler-se o n.º 2 do artigo 266.º da CRP com esta amplitude, na linha do previsto pelo n.º 1 do artigo 3.º do CPA, assim como está ela sujeita ao princípio da responsabilidade pessoal dos funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas (Cfr. artigo 271.º da CRP), respondendo pelas suas acções e omissões perante os cidadãos, constituindo o garante de que a sua actuação é conforme o direito e o interesse público.
Ora, a actividade de gestão privada da Administração estará sujeita a este princípio de juridicidade? É que a submissão ao princípio da reserva de lei foi concebido para uma Administração autoritária, mas quando estamos perante uma Administração prestadora onde em causa estão a concessão de prestações a particulares fará o mesmo sentido? Freitas do Amaral acompanha a corrente alemã, perfilhada por Jesch, ao entender que a sujeição ao princípio da legalidade cobre todas as manifestações da Administração Pública, seja a agressiva, seja a de prestação, até porque mesmo na Administração de prestação podem ocorrer violações aos direitos dos particulares e aos seus interesses legítimos (Vg: recusa de prestações). 
Em suma, o princípio da legalidade, no sentido amplo da juridicidade, vincula e serve de limite de toda a actividade administrativa, seja ela de direito público, seja ela de direito privado, tal como bem resulta do artigo 2.º do CPA.
Mas, na realidade, não é indiferente saber se a entidade administrativa que prossegue o interesse público assume a forma pública ou se, pelo contrário, tem natureza privada, assim como não é indiferente saber se ela exerce a sua actividade mediante uma gestão pública ou privada, pois que, segundo Pedro Fernández Sánches, in “Os Parâmetros de Controlo da Privatização Administrativa"uma entidade pública assim dotada por iniciativa pública está obrigada constitucional, legal e estatutariamente à prossecução exclusiva do interesse público (Cfr. n.º 1 do artigo 266.º da CRP), pelo que qualquer actuação para cumprir fins privados será inválida por desconformidade com os seus fins constitucionais e estatutários, sendo este o seu limite constitucional. 
Ao inverso,  a “privatização” de uma entidade administrativa equivale à possibilidade de prossecussão também de interesses privados e não apenas exclusivamente públicos. Por isso, sempre que ocorre a transformação de uma pessoa colectiva pública por uma de natureza privada de cariz societário a determinação dos interesses a prosseguir passam a competir aos respectivos accionistas ou associados, podendo variar ao longo dos tempos. Tal significa que, mesmo que os accionistas públicos detenham a maioria de capital e, por isso garantam a prossecução do interesse público, o que é facto é que, por um lado, tal realidade é meramente temporária e precária (mal sejam vendidas as restantes participações sociais e a maioria do capital transite para sócios privados a prossecução do interesse público deixa de ser um interesse primordial a proteger) e, por outro, o interesse público será desenvolvido simultaneamente com os interesses privados dos accionistas ou associados.